Thursday, July 26, 2007

Dia sem número (a viagem já acabou!) - não vão poder me acusar de não terminar a história!

E aí, Galera

Já não era sem tempo! Há quem diga que a produção artística ou intelectual consiste de 10% de inspiração e 90% de transpiração. Apesar de concordar parcialmente, por respeito ao olfato literário de meus queridos leitores e leitoras, prefiro escrever apenas quando a inspiração se manifesta com mais generosidade, como creio ser o caso agora. Já cheguei em casa há duas semanas (na verdade há vários meses, pois este post começou a ser escrevido em março e terminado em julho), as aulas estão muito interessantes, e o descanso gerado pelo desemprego dá a impressão de que minha cabeça renderá muito nos estudos este semestre*. Tomara. Felizmente, para concluir, minha ânsia nômade foi substancialmente aplacada pela viagem e tudo que nela ocorreu, o que é muito bem-vindo na vida de alguém que está novamente acorrentado a limitações geográficas e cronológicas institucionais, mesmo que voluntariamente e por um bem maior. Lá vamos nós, então.

A quarta feira, dadas as condições, até que começou bem. Acordei com o despertador do Edgardo tocando, já que pretendíamos tomar o café nem tão tarde para seguir viagem nos esquivando do sol que prometia ser forte. A perna estava aparentemente bem, apesar de estar exsudando um pouco daquele característico líquido seroso e levemente amarelado das feridas extensas e não tão profundas. Foram deixadas algumas manchas no lençol, por esse motivo, mas fico com a impressão de que lençóis de hotel estão acostumados a manchas piores. Mesmo tendo levantado cedo, para tomar o café, a preguiça custou a passar, e fomos nos arrumando do mesmo modo de sempre: veste um par de meia, senta, pensa, veste o outro, fecha um alforje, senta, levanta, pensa, guarda o telefone na pochete... Acabamos saindo já perto da hora do almoço, com sol forte mas com bastante disposição para pedalar. A perna, que apresentou alguma rigidez no início da pedalada, assim que aqueceu conseguiu trabalhar livre de dor, com a força normal e boa amplitude de movimento. Não fiz curativo, de modo que a ferida ficou exposta ao ar, mas coberta com uma camadinha de Merthiolate.
O trecho de travessia urbana de Criciúma, que já conhecíamos bem dada a quantidade de vezes que passamos por ali voltando do Rio do Rastro ou do Corvo Branco para “economizar” trechos da BR-101, foi veloz, trepidante, com alguma tensão normal por causa do trânsito, e bastante quente. Dali, seguimos a Forquilhinha e depois Meleiro, onde decidimos almoçar. Para chegar a Meleiro, é necessário sair da SC-108, por onde vínhamos com um leve vento contra e um acostamento bom, apesar de não muito largo. Optamos por parar em um posto de gasolina, que servia um prato feito farto e barato. Não consegui comer tudo, talvez por efeito do analgésico que ainda tomava, talvez por causa do calor, talvez por causa do cansaço provocado pelo ritmo meio forte (demais, para quem pretende pedalar o dia todo) em que vínhamos. O Edgardo sim, esse limpou o prato mesmo, e obviamente tomamos um refri de dois litros que sumiu com facilidade em nossas goelas.
Na hora de sair da cidade em direção a Turvo, resolvemos tomar um atalho, e esse atalho passava por uma rótula com vários ramos. Analisamos a placa meio confusa, e concordamos que devíamos seguir por um determinado braço asfaltado, e lá fomos nós. O vento continuava contra, e tomamos umas boas pancadas de chuva, que já havia começado no posto de gasolina, devido à (esperada) frente fria, que chegara. Ao passarmos pela localidade de Morro Grande, achei o local meio pouco familiar demais para uma localidade por onde supostamente já havia passado dirigindo há nem tanto tempo, mas enfim... Agora, quando o asfalto virou ESTRADA DE TERRA, aí sim tudo ficou muito esquisito. Perguntamos a dois rapazes num carro envenenadinho que vinha pela estrada como fazer para ir a turvo. Eles disseram que era necessário ir até Meleiro e pegar à direita. Mas aí dissemos que já estávamos vindo de Meleiro, e eles fizeram aquela cara de intrigados (“como assim?”), e eu mais ainda. Liguei o GPS (coisa que já deveria ter feito) e constatei, com aquela cara de quem vê o artilheiro do seu time errar um pênalti, que de fato havíamos andado uns dez quilômetros para fora do caminho, indo parar na cidade de Morro Grande. O carro dos caras acabou apagando, e não queria ligar mais. Perguntaram se eu tinha alicate. Eu até tinha, mas na chuva, constatando que acabaria pedalando 20km de graça, achei que antes de mais nada minha situação era pior que a deles, e disse que não tinha, seguindo em direção a Meleiro. Ao menos a volta foi com um bom vento a favor, e conseguimos alcançar a estrada verdadeira com facilidade. Ao chegar perto de Meleiro, encontramos um senhor em um carro, também confuso por causa da placa, que escapou de andar os tantos quilômetros a mais porque casualmente resolveu perguntar para nós.
Dali, fomos a Turvo, ainda pelo asfalto e ainda com chuva, que já começava a diminuir (as nuvens estavam se dirigindo para o norte). O ritmo já não era tão forte, afinal tínhamos pedalado bastante já, e não queríamos acabar com a energia necessária para o dia seguinte. A idéia era ir a Jacinto Machado, e ao olhar o GPS nos demos conta de que era muitíssimo provável que houvesse um trecho de estrada de chão que serviria como atalho, nos livrando de ter que ir até Ermo pelo asfalto para só então ir para Jacinto Machado. Pedi informação em um posto de gasolina, e de fato me explicaram detalhadamente como ir até lá, destacando que faltavam apenas mais uns doze quilômetros. Beleza.
Seguimos então pela estrada de terra e cascalho, bastante pesada e fofa, com muitas pedras e poças de água suja. Eu naquele momento estava voltando a enfrentar um problema de assadura ultra-ardida. Creio que devido a estar tomando analgésico, senti menos dor na bunda do que seria o normal, e possa ter ficado muito tempo sem trocar de posição, gerando falta de circulação e deterioração da fisiologia cutânea das polpinhas, que agora ardiam como se lá houvesse urtiga. Para piorar, o terreno trepidante e a canseira avançada.
Logo no início, passamos por uma grande ponte de madeira, sobre um rio bastante cheio e muito bonito, onde fizemos um lanche à base de Club Social, sentados sobre as grandes pedras que se empilhavam à beira da estrada. O terreno fofo fez com que pedalássemos com mais esforço, o que deu um certo calor, e como o céu estava limpando, a idéia de um banho de rio estava bastante tentadora, mas não houve condição para mim devido ao machucado ainda muito cru e infeccionável. O Edgardo acabou não tomando também, para não se molhar muito, mas ambos molhamos ao menos os braços e a cabeça, coisa que sempre dá um vigor novo à pedalada. E lá fomos nós, afinal já faltavam poucos quilômetros para a cidade.
Logo adiante, depois de algumas curvas, havia outra ponte, esta em condições totalmente diferentes: o rio era bem mais estreito, mas estava muito mais cheio, e a água estava passando em um nível cerca de meio metro mais alto do que a ponte, criando aquela conformação de correnteza por sobre a ponte, um degrau mais alto de água rio acima, com vários galhos grandes de árvores presos pela ponte-represa, e o súbito rebaixamento do fluxo de água na borda “rio abaixo” da ponte, onde a água atinge maior velocidade e logo em seguida uma grande turbulência, levando a reforçar bastante a cautela na hora de cruzar a ponte. O Edgardo atravessou primeiro, caminhando com a bicicleta no ombro e água pelo joelho, com passos firmes, atingindo o outro lado sem dificuldade. Eu estava determinado a passar pedalando, mas ao tentar fazer isso vi que algo estava trancando a pedalada: a água empurrava a corrente e o paralama para o lado, com força, e alguma dessas coisas trancava e a roda era impedida de girar. Acho que até foi melhor assim, pois não tenho certeza de que conseguiria manter o equilíbrio, e acabei também atravessando com a bicicleta nas costas, o que foi mais difícil devido ao peso mal distribuído do alforje sobre o bagageiro. Para meu alívio, o motivo da pedalada trancada devia estar relacionado ao fluxo de água contra a corrente, já que foi possível pedalar normalmente do outro lado, ou ao menos tão normalmente quanto permitiam o cansaço e as assaduras.
Após cruzarmos o rio, tivemos de andar poucos quilômetros mais até entrar no perímetro urbano de Jacinto Machado, uma cidade pequena, situada na planície ao pé dos morros da Serra do Mar. Assim que chegamos, fomos a algum posto de gasolina nos informar sobre algum hotel, e nos informaram que havia um hotel junto à rodoviária, que por sinal era o único da cidade.
Ao chegarmos lá, fomos recebidos por um senhor que era também o dono de um restaurante, que ficava no térreo do hotel, atrás da rodoviária da cidade. Pedimos um quarto, que era bem barato, e, a pedido dele, deixamos as bicicletas dentro do restaurante, onde passariam a noite, e levamos nossas tralhas para cima. O fato de o restaurante possuir a parede frontal toda envidraçada deixou o Edgardo bastante apreensivo, mas eu imaginei que não haveria problemas com as bicicletas (felizmente não houve mesmo...). Fomos ao quarto, e enquanto eu tomava banho o Edgardo foi à procura de uma farmácia para comprar repelente de insetos, que havia muitos em nosso quarto, cuja janela estava de frente para um terreno grande com vegetação alta e prováveis poças d’água. Durante o banho, lavei bem as roupas, luvas, sapatilhas, e depois me sequei bem e passei bastante hidrocortisona na bunda. Ao final da viagem, já estava me sentindo O doente, tomando analgésico, passando corticóide na bunda... Sem falar de uma unha encravada no dedão do pé, que estava branquinha de pus já...
Ao chegar o Edgardo, tomou também um banho e lavou e estendeu suas roupas. Uma pena que o tempo continuasse úmido e que o tempo que teríamos para deixá-las secando fosse curto, porque a estrutura para estender roupa molhada de DUAS pessoas, dentro do quarto, era precária. Fomos então jantar.
No restaurante, havia um elemento sentado à mesa, magrão, cara duns quarenta anos, cabelo oxigenado, pele queimada de sol... O dono do restaurante perguntou se a gente se importava de sentar à mesma mesa, pois assim seria mais fácil nos servir, e aceitamos. A comida foi trazia, em grande quantidade: macarrão, carnes com molho, salada, mandioca, feijão e arroz... Enquanto comíamos, fomos conversando com o elemento esquisito, mais eu do que o Edgardo. Enquanto, para mim, travar contato com aquele tipo de elemento já havia se tornado um dos atrativos de turismo antropológico da minha viagem, o meu amigo estava extremamente desconfiado e contrariado, dado o conteúdo que a conversa ia tomando. Já explico.
Enquanto comíamos carne, feijão, o sujeito estranho (chamemo-lo “Alemão”, embora não apresentasse grandes indícios de ascendência germânica) pegou o pode de farinha de mandioca e, após servir um pouco em seu prato, perguntou-nos, com aquela cara de cachorro com fome: “vocês querem farinha? vocês GOSTAM de farinha?”, e nós, polidamente, dissemos que não, obrigado. Ele então perguntou como a gente pedalava, por que, por onde, se a gente gostava de pedalar, se pedalava muito, se a gente TOMAVA ALGUMA COISA para pedalar... Não demorou para que ele dissesse que era chegado num pó, que trabalhava por aí nos interiores vendendo pôsters (vimos, no quarto dele, a caminho do nosso, pilhas e pilhas de pôsters com aquelas molduras de madeira ordinária), que tinha uma boate em Araranguá, que ele preferia ficar longe da boate o máximo de tempo possível para não gastar todo o dinheiro dele em pó – o problema é que ele adorava! – e assim foi contando. A essa altura, o Edgardo já tinha se mandado para o quarto, e eu, assim que terminei de comer, me fui também, a tempo de ser repreendido por dar tanta trela para um psicopata (“mas eu só tava conversando...”) e por não me importar de deixar as bicicletas a noite toda sem cadeado dentro do restaurante envidraçado onde elas obviamente corriam um sério risco de ser roubadas. É possível, mas em Jacinto Machado?
O fato é que não foi o medo ou o receio que nos dificultou o sono. Durante a noite, fomos atacados por uma horda insaciável de mosquitos, e nem aplicações massivas de repelente (inclusive jatos de spray diretamente no canal auditivo) puderam aplacar a ira dos insetos alados. Pra piorar, eu estava com a perna bem incomodativa, tinha que me virar pro lado toda hora para tentar me ajeitar, e a cada virada a perna ardia muito, muito. Sem falar no calor sufocante, que nos fazia suar, e nos obrigava a deixar a janela aberta, já que não havia ventilador, o que também facilitava a secagem da roupa e a entrada dos mosquitos. Para meu tormento, o Edgardo conseguiu pegar no sono, e começou a roncar paquidermicamente... Enfim, uma noite de cão, que me rendeu pouco ou nenhum do necessário sono que precisaríamos no dia seguinte, para ir a Cambará do Sul.

* Durante o semestre, fiz um curso de ultrassonografia músculo-esquelética, voltando a trabalhar no mês seguinte ao término do seguro-desemprego. Viajei alguns milhares de quilômetros de avião para visitar a Natalia, de Londrina, atualmente minha namorada amada e, de preferência, minha futura esposa. (aquela em cuja casa cheguei podre e saí recuperado, lembram?)

Monday, March 05, 2007

Dia 91 - Porto Alegre, RS - 4.970km - final da viagem

Bom, pessoal, finalmente minha viagem terminou, estou em casa (agora na LAN, na verdade, pretendo me livrar do vício internético doméstico), prontinho para iniciar avidamente minhas atividades acadêmicas daqui a poucas horas. Lá vai o relato sucinto dos últimos dias de viagem.

Saindo da LAN em São Bonifácio, de fato fomos à pracinha para ficarmos matando tempo e apanhando uma certa brisa. Na hora da janta, comemos novamente a janta no Essen Haus, que consistia do mesmo cardápio do almoço, remisturado e reaquecido, mas mesmo assim estava bom. Deitamos cedo, mas ficamos assistindo Tela Quente para que o sono viesse. Dormimos bem e a noite toda.

No dia seguinte, terça, fomos acordados com a advertência ameaçadora de que se ficássemos ali após as dez da manhã, pagaríamos um pernoite a mais. O aviso foi dado às quinze para as dez, de modo que nos mexemos logo e nos mandamos para a padaria para tomar café e comer pão. Feita a refeição, fomos à praça, onde ficamos esperando pacientemente a hora do almoço, já que o dia estava quente e o plano era sair na metade da tarde para percorrer os cinqüenta quilômetros de estrada de chão durante o dia, e emendar noite adentro para percorrer a maior distância possível longe das malignas ondas térmicas. Almoçamos ao meio dia, e ficamos lá remando o prato até uma da tarde mais ou menos, conversando com os trabalhadores que estavam no restaurante, aproveitando para obter várias informações sobre a estrada, que segundo eles estava muito precária. Depois de remendar meu pneu traseiro na praça, furado por um fio metálico desses que se solta dos pedaços de recapagem dos caminhões, saímos em direção a Rio Fortuna, pouco depois das duas e meia da tarde, já que as ondas de calor não estavam assim tão malignas.
A estrada tampouco era tão horrível, poderia sê-lo para carros e caminhões, já que apresentava inúmeras valetas, mas sua textura era bastante lisa, era um areião fino e batido, sem acréscimo de cascalho, o que permitia manter uma boa velocidade média sem muita trepidação, requerendo apenas desviar de algumas panelas e negociar com as valetas nas descidas. Assim fomos, subindo e descendo, pegando água e descansando - pouco, na verdade - sentindo novamente o prazer de pedalar. O sono e o rango da véspera nos deixaram muito dispostos.
Porém, como nem tudo são flores, consegui quase no fim do passeio profaná-lo com o mais indesejado e vergonhoso evento na rotina de um cicloturista: um tombão! Vinha eu descendo em meio a algumas curvas, quando em uma curva para a esquerda desencaixei o pé esquerdo para auxiliar no equilíbrio. Logo em seguida, porém, havia uma curva para a direita, e creio que enquanto me ocupava de reencaixar o pé esquerdo e desencaixar o pé direito, devo ter deixado de prestar atenção ao solo, e acabei passando com a roda dianteira na borda direita de uma valeta longitudinal. Como a curva era para a direita também, a roda escorregou, ocorrendo o fenômeno do "pealo", que é quando a bicicleta simplesmente desaparece debaixo do ciclista. Sendo assim, acabei sendo freado pelo meu couro lixando no áspero e fino areião, o que me rendeu uma mancha esfolada na perna, um tampão removido do joelho, e mais uma escoriação menos pior no quadril, por cima da bermuda, que ficou levemente furada. As mãos nada sofreram porque eu estava de luva, e a musculatura também ficou absolutamente preservada, já que não houve impacto algum.
Imediatamente, comecei a sentir uma ardência extremamente forte, enquanto o sangue porejava muito lentamente pelos ferimentos. Preferi não lavar e seguir adiante, procurando uma farmácia em Rio Fortuna para comprar um analgésico. Enquanto o Edgardo ia na frente, eu ia descendo todo cagado, com aquela cara de quem chupou limão, rangendo os dentes. O pé direito chegava a tremer sobre o pedal devido à dor intensa, não por eu estar pedalando, mas por estar ardendo, ardendo muito. Chegando finalmente em Rio Fortuna, tomei dois comprimidos de Dolamin (um bom analgésico, sem dúvida) e fomos à padaria fazer um lanche. Foi bom finalmente que as pessoas parassem de ficar olhando para minha enorme barba, para prestar mais atenção ao meu joelho esfolado e a perna lavada de sangue seco e empoeirado. Além disso, a cidade, de imigração alemã, está repletas de loirinhas muito lindas de olhos claros e pele lisinha.
Dali, pegamos o asfalto até Braço do Norte, e eu estava me sentindo muito bem para pedalar, já que o analgésico funciona rápido. Dali seguimos a São Ludgero (chegando lá ainda de dia), Orleans, Urussanga (onde jantamos um xis bem meia boca), Cocal do Sul e Criciúma, onde ficamos no Hotel Gion, a opção mais relativamente em conta. O banho foi bastante dolorido, mas o aspecto da perna melhorou consideravelmente após a limpeza. Apesar de tudo, consegui dormir logo.

Bom, já é tarde e devo ir almoçar. Assim que possível, eu termino de contar a viagem. Pretendo ainda escrever algumas reflexões não narrativas sobre tudo que descobri, confirmei e aprendi durante a viagem, mas para isso terei de refletir primeiro, o que deve levar algum tempo ainda. Grande abraço, e até mais!

Monday, February 26, 2007

Dia 84 - São Bonifácio, SC - 4.560km (145)

E aí, Galera!

Como podem ter imaginado, carnaval é tempo de férias, inclusive férias de postagens, mas vamos ao resumo ultra-acelerado dos fatos, já que meu ritmo de pedal nesse período foi o de uma lesma tetraplégica.

Saindo de Curitiba no domingo de manhã, peguei tempo bom e asfato adequado para ir em direção ao litoral de Santa. Almocei num lugar muito bom, num dos postos que têm perto de São José dos Pinhais, onde não bebi nada por ter tido a oportunidade de comer vários pedaços de melancia gelada. Hummm, totoso!!
Muito se engana quem pensa que estar em Curitiba e ir para o litoral de bicicleta é fácil por causa da diferença de altitude. Perdi as contas de quantas subidas e descidas percorri até chegar no topo da serra, o que ocorreu lá pelo quilômetro 80! A descida da serra foi rápida, apesar da chuva durante toda a descida causada pelo vento na encosta da serra, e das relativamente perigosas ultrapassagens que fiz nos caminhões mais lentos. Chegando a Garuva, já em Santa Catarina, fiquei no Hotel Everester (sim, era esse o nome), relativamente bom e barato. Depois de um bom banho com lavagem de roupas, fui à LAN ver os emeios, em seguida jantei um delicioso prato feito no restaurante que fica na esquina do semáforo (só tem um lá), e fui assistir TV antes de dormir.

No dia seguinte, me senti disposto e resolvi abreviar o tormento de chegar a Bombas fazendo os 170km em um único dia. Havia vento contra e calor, mas a proximidade crescente do destino é capaz de operar maravilhas com a disposição de cicloturistas. Almocei em Joinville no restaurante do Makro, o mesmo onde parei na vinda, e durante a tarde parei várias vezes (para comer melancia na casa da melancia, para comer pastéis e suco em uma enorme tenda perto de Itajaí. Acabei chegando ao destino às dez e meia, podre de cansado mas satisfeito com o rendimento do dia.
Em Bombinhas, fiquei hospedado na pizzaria Eco 360°, no topo do morro da tainha, onde o Edgardo, amigo meu, estava trabalhando durante o verão. Lá de cima a vista é muito bonita, o mar muito verde, mas o morro é terrivelmente íngreme e alto, e a preguiça de ir à praia foi grande nos primeiros dias, o que não nos impediu de fazer coisas divertidas como derrubar pinus a machadadas, remar caiaques no mar de graça, e cavar buracos gigantes na areia fina da praia do mariscal. O pessoal da pizzaria me recebeu muito bem (apesar de me conhecer muito indiretamente só de nome e "fama"), e a janta diária era uma pizza tamanho gigante, quase do tamanho de uma roda de bicicleta aro 26, muito bem feita, recomendo.

Os três dias seguintes foram de ócio e atividades já citadas (derrubar pinus, remar caiaques e cavar buracos enormes na areia, além de descansar intensamente)

Na sexta feira acordei cedo para me mandar pedalando até Florianópolis, onde passaria o carnaval com mais 14 pessoas em uma casa alugada. O combinado era me encontrar com o Daniel na ponte, mas como eu peguei um ventão a favor e ele pegou um engarrafamentão contra, acabei chegando antes dele, aproveitando para comprar uma Coca-Cola dois litros e dar uma passada na casa do Varda para contar as novidades e fazer a matrícula na UFRGS. Dali fomos eu e ele até a ponte, onde logo chegaram o Daniel e mais quatro gurias, com dois carros no total: a Greice, a Mônica, a Alessandra e a Francini, todas muito bonitas e simpáticas, embora provavelmente tenham ficado desorientadas ao ver minha máscula e hirsuta ficura magra e longilínea, suada, fedorenta e cansada. Nem todo mundo está preparado para isso.
Dali fomos rapidamente para o Bob's (por absoluta falta de um Mac), forrar a pança com uma miniatura de hamburger superfaturada. Dali, seguimos para o norte da ilha, para procurar uma casa de aluguel em Ponta das Canas. Eu em particular imaginei que ficaríamos até as onze da noite batendo perna pra lá e para cá, devido ao adiantado da hora, mas por incrível que pareça conseguimos achar uma casa muito boa na principal de ponta das canas, há poucos metros de um supermercado bom, sendo que o aluguel ficou em dez reais por dia por cabeça, ou seja, praticamente de grátis.
Seria difícil lembrar de tudo o que foi feito no carnaval, mas posso dizer que as principais atividades foram ficar torrando ao sol no sábado em frente ao Pirata na praia brava, inundando os ouvidos com a mais pura techno-music e enchendo os olhos com as mais belas figuras femininas (as masculinas não olhei, mas eram do tipo bombado de sunga branca e óculos enormes com bronzeado malandro), além de encher a goela com as mais violentas ondas ao tentar passar a arrebentação, mesmo com pé-de-pato. Foi difícil, mas da segunda vez me dei melhor, servindo praticamente como alvo para os surfistas que vinham velozmente em minha direção. O outro dia foi nublado, e aproveitei para encher a pança no café da manhã que servia de almoço (dois litros de batida com mamão, maçã, mamão, açúcar, nescau e ovo, só para mim, além de dois pães franceses). Nem preciso dizer que o liquidificador da casa, após o meio-dia, só funcionava se fosse para fazer alguma poção alcoólica (as quais eu não consumi) como melancia atômica, frozen, e outras firulas carnavalescas que os universitários adoram. Os restos dessas beberagens foram amplamente usados para banhar o colega ao lado, inclusive para que o mesmo acordasse pela manhã, o que gerou um ciclo de vinganças líquidas que incluiu até espuma de barba, aguardem fotos. Nem preciso dizer que me esquivei de torrar vários dinheiros com baladas desgastantes em lugares como El Divino e Cais Cais, mas acabei indo a um sambão na Lagoa da Conceição, o que me rendeu a oportunidade de ver o Daniel fazer fiasco e requerer meus dotes de condutor de veículos, por estar podre de encachaçado.
A galera que estava lá conosco era muito divertida (não mencionei os outros, que eram o Felipe, o Rafael, o Vicente, a Dani, o Xuxa, a Letícia, a Franciele, a Fernanda e o Álvaro), e novamente o grande lance do carnaval foi a ampliação do círculo de amizades. Ainda por cima encontrei um casal de amigos, o André e a Márcia, que não via há tempos, eu estava no super e eles apareceram, e ainda por cima estava hospedado há duas quadras da nossa casa... Que mundo pequeno!

Dali fui de carona, na quinta feira, de volta a Bombinhas, onde passaríamos mais alguns dias descansando na praia progressivamente mais desocupada após o carnaval. Alugamos uma casa em Mariscal, e ali foram mais alguns dias torrando ao sol, cavando buracos realmente enormes na areia (exercício, instrospecção e desafio mental), nadando de pé de pato, indo a mirantes, fazendo rangos malandros em casa, conversando com pessoas novas (de preferência belas moças), derrubando pinus e outras atividades praianas.

Aos poucos, todos se mandaram e ficamos eu e o Edgardo descansando, domingo à tarde, comendo sempre que possível uma massinha, um pãozinho, uma espiga de milho, já que à tarde nos mandaríamos, virando a noite no pedal para fugir do sol.
Saímos já com déu escuro, fazendo uma média bem alta até Florianópolis, e depois dividindo o tempo entre pedalar sofregamente entre serras horríveis (entre Águas Mornas e São Bonifácio), dar tapas no farol que está com o funcionamento muito precário (acabei tendeo que fazer uma braçadeira para mantê-lo fechado e ligado, usando um raio quebrado que peguei do Sérgio Eloy lá em Itaúna) e parando para descansar, comer e esticar as paletas no chão duro, dando uma enganada na podridão corpórea.

Acabamos abreviando nosso percurso, que era inicialmente até Braço do Norte, para São Bonifácio, cidade de forte influência étnica e cultural alemã, à qual chegamos bem cedo após descer uma longa serra com neblina. Ficamos num hotelzinho, nos fartamos em uma apetitosa padaria, e após uma soneca pesada fomos almoçar no restaurante Essen Haus, muito boa a comida. Saindo dali, viemos a uma loja de informática que tem internet, onde fomos atendidos por uma muito simpática moça que representa bem o perfil típico da beleza feminina local: loira de olhos azuis, bem bonita e cheia de carisma. Daqui a poucos momentos, saindo daqui, pretendemos aproveitar o final da tarde para sentar na praça, comer algum doce, jantar cedo e nanar profundamente.

Um abração a todos e um beijo às meninas, em breve me uno a vós novamente!

Saturday, February 10, 2007

Dia 68 - Curitiba-PR - 4.020km (120)

E aí, Galera

Deu pra ver que não estou mais com muita condição (nem saco, para falar a verdade) de descrever minuciosamente meu dia a dia na viagem. Creio que isso seja efeito e estar correndo contra o tempo para chegar logo na praia para o carnaval, e em seguida em casa para o começo das aulas em março.

Lá em Echaporã, logo depois de sair da LAN, fui tentar tomar uma Coca-Cola, mas ela desceu com dificuldade, estava me sentindo quente, com sono, podre, enfim. Fui pra pousada e pedi algo gelado para tomar, mas o cara me deu um suco de laranja, cenoura (!) e água de coco, e estava morno! Eu tomei meio copo, larguei ele ali em cima de qualquer jeito, o que o cara certamente considerou uma grosseria, e fui correndo ao banheiro, onde logo vomitei. E vomitei tudo: pão prensado com bife, café, picolés, sorvete, tudo regado a uns dois litros (sem exagero, foram quatro generosas chamadas no Hugo) de líquidos rosados. Pronto, agora eu estava melhor, mas piorei rápido, por estar cansado, com sono e sem nenhuma fonte de energia no bucho. Deitei para dormir, e dormi mesmo, com ventilador em cima de mim, entre ondas de calor e calafrios por causa da febre. Quando mais tarde decidi que deveria comer algo e dormir definitivamente o resto da noite, bastou levantar (depois de muito preparo psicológico) para já ficar tonto, fraco a incapaz de ficar sequer sentado: deitei no corredor, e fui esperando melhorar. Entrei na casa do tio do hotel, que continuou com aquela expressão de estar sendo invadido (a esposa então...), mas ao mesmo tempo dizendo que eu poderia pedir o que precisasse... Pedi um copo gigante de água gelada, açúcar e sal, e fiz eu mesmo meu soro caseiro, o qual tomei em 0,37 segundos e me senti imediatamente melhor. Dali, por sugestão prontamente atendida por mim, feita pelo cara do hotel, fui buscado por um veículo do hospital para tomar um soro.
Fui muito bem atendido no hospital, onde me espetaram aquela borboletinha no braço (que desagradável...), e fui abandonado no escuro com glicose, soro fisiológico, bromoprida para o bucho, e uma garrafa de soro de reidratação oral bem geladinha. Uma hora depois estava já saindo caminhando. Comprei dois Fandangos e dois Gatorade (sim, sódio, carboidratos, nada de germes, e água gelada, tudo que eu precisava pra dormir).

Dia seguinte, sábado, acordei melhor, mas não muito. Estava dividido entre ficar ali, naquele local sem recurso, ou ir adiante lentamente, para tentar achar refeições e estadias melhores. Após café da manhã levíssimo, almoço suficientemente nutritivo (ambos no hotel) e um fandangos com gatorade de tarde, saí pedalando às 15h em direção a Tarumã ou Florínea, cidades dentro do meu alcançe naquela tarde fresca mas ensolarada, ou vice-versa. A maldita estrada era uma retona no estilo montanha-russa, alternando 50km/h com 8km/h incontáveis vezes. Passei por Assis, onde tomei um Energil Sport, depois Tarumã, onde tomei água com gás, e decidi ficar em Florínea. Ao chegar lá podre com 80km rodados, descobri que lá não tinha hotel.
Segurando a decepção, encarei os 35 restantes durante a noite, até Sertanópolis, onde cheguei pouco antes das dez da noite, graças à estrada boa com acostamento, nada de buracos ou surpresas. Lá, após ligar para a Natália, minha futura anfitriã de Londrina, fui abordado por um rapaz chamado Michel, que acabara de voltar de uma viagem de 16 dias a Montevidéu (ele foi até lá em 16 dias, tem louco pra tudo), e me convidou para jantar com a família dele na lancheria, e depois dormir na casa dele ali perto. Claro que aceitei, e embora tenha comido apenas algumas garfadas de arroz e uns pedaços de churrasquinho, tomei perto de um litro de coca. Que beleza.
Apesar de muito bem acomodado, custei a dormir, acho que por causa da coca, que tem o efeito estimulante, má idéia para a hora de nanar.

Dia seguinte, domingo, acordei mais tarde que deveria, tomei um belo café, me despedi depois de algumas fotos, e me mandei a Londrina, o tão sonhado próximo destino. No caminho, entre plantações de soja e sobe e desce constante (ao menos não era tudo reta), encontrei três ciclistas de Ibiporã, que foram treinar em Sertanópolis e já estavam voltando para casa. Fomos indo em um ritmo forte (demais até, para um convalescente), conversando e trocando idéias. Depois de nos separarmos, segui sozinho de Ibiporã até Londrina, já podre de cansado, ainda por cima o caminho é cheio de subidas. Cheguei meio-dia e meia na casa da Natália, amicíssima do Gonzalo, amicíssimo meu. Ela me recebeu super bem, e os próximos muitos dias foram uma beleza. Cheguei lá desidratado, depauperado energeticamente, podre mesmo, sem nenhum ânimo físico, magro, no bagaço, exterminado, imprestável. Fiquei por uns dois ou três dias com diarréia consistente (a diarréia era consistente, as fezes não...), sem apetite e com um sono cavalar. Era perceptível a progressão diária, de um farrapo humano para, novamente, uma atlética máquina de pedalar, com músculos e fígado repletos de glicogênio, pele túrgida e olhar vivo. Tudo isso graças aos intermináveis papos de altíssimo nível intelectual sobre todos os assuntos, que tínhamos o tempo todo, às brincadeiras com o Camilo, filho dela, que com quatro anos faz coisas mais avançadas do que eu fazia com seis (são outros tempos...), e adora assistir várias vezes seguidas filmes como Carros e Bob Esponja: O Filme (este último, presente meu). Ele tem uma bicicleta, e está já andando com uma rodinha só. Tem futuro, o rapaz... Ah, e é claro, fundamental para a minha recuperação foi a comida espetacular da Sônia, a senhora que arruma a casa da Natália, e tem uma mão abençoada para mandar um rango malandro. Realmente, umas "férias das férias", uma estadia que vai deixar saudades, duvido SPA melhor. Vale um alô para a irmã Amanda e sua filha Yara, e o avô Mário, outros membros da família que tive o prazer enorme de rever ou conhecer.
Durante minha estadia por lá aproveitei e visitei a fábrica da VZAN, onde conversei com o José Orlando, gerente de produção. Ele me mostrou várias máquinas, desde as que fabricam os aros (a coisa é rápida, eles fabricam muuuuuuitos aros por dia!), até as que montam rodas (coisa robotizada, que monta, centra e pré-tensiona as rodas, semi-automaticamente, ficando em um padrão de excelência mesmo), e, recentemente, os cubos, que são de alumínio forjado a frio com forjas 3D, aguardem, garotos, em breve a VZAN vai invadir o Brasil com novos produtos a um preço inacreditável SEM SER COISA ORDINÁRIA!

Devido a razões cronológicas, geográficas e logísticas, saí de lá na sexta-feira à tarde, dentro de um ônibus da Viação Garcia com destino a Ponta Grossa. Sim, profanei minha viagem com uma viagem de ônibus, e não estou nem aí. Foi a melhor escolha: economizei 300km de relevo bem ondulado, estrada com poucas paradas possíveis, e evitei a fadiga. Me ajudou a fazer a mão do desmanche e carregamento da bici e da carga o Tyago Yoshida, que conheci em Londrina. Ele também é cicloturista e fez uma viagem bem longa (7 meses) pelo norte e nordeste do país. Grande cara. Dormi em um hotel em Ponta Grossa, meio caro, mas o rango foi ótimo e barato, com destaque para a Batata-Salsa, um tipo de batata que parece mandioca e tem um sabor indescritível. E ótimo!!

Hoje, sábado, saí de manhã de Ponta Grossa depois de um ótimo café da manhã, e não sofri muito para chegar em Curitiba, com várias descidas, subidas possíveis, muito bem-vindas curvas, e até um encontro casual com três ciclistas de Londrina (!) que estão indo passar o carnaval em Florianópolis. Estão acampando em qualquer lugar, com mochilas nas costas, bagagem coberta com sacos plásticos... É, equipamento não é nada, vontade é tudo! Fomos um trecho papeando, tiramos umas fotos, e era isso, lá foram eles. Eu segui serpenteando entre alguns pedidos de informação, até a casa da minha prima Rosângela, sendo recebido pelo marido dela, o Fernando, e os filhos deles, Bernardo e Fabricio. Já acomodado, banhado, alimentado, blogado, vou lá pra falar com eles, senão vão me tirar pra antisocial, aqui na frente deste micro.

Na medida do possível, torno a escrever, mas acho que a coisa vai ser assim, mais sintética e esporádica. Um enorme abraço a todos, amigos!!

Friday, February 02, 2007

Dia 60 - Echaporã, SP - +/- 3.800km (211)

Bom, galera, pelo título já viram que eu pedalei pra caramba. Como estou em rumo acelerado em direção à praia, e o sol está de matar, resolvi fazer uma pedalada noturna e fui de Jaú até Echaporã, com um descanso longo na tarde de quinta em Pederneiras, e acabei fazendo de uma vez só, sem dormir, o que geralmente levaria três dias pra fazer. Neste momento estou me sentindo podre, zonzo e talvez com alguma febrezinha reativa, mas logo passa. Pra variar, meu farol malandro com dínamo deu pau e não está funcionando. O outro farol, com led, está com a tampa meio rachada, e tive de amarrá-lo com fita isolante sobre a bolsa de guidão, pois não há mais espaço no próprio guidão para prendê-lo com seu suporte original. Agora, na LAN, resolvi carregar o telefone, e aquele carregador genérico fajuto não faz nem cócegas no telefone, mesmo acendendo o led indicador de funcionamento, e a bateria está quase acabando. Enfim, nada que me obrigue a mudar rotas ou atrasar a viagem, hehe.
Outra hora, quando eu estiver me sentindo melhor, vou comentar sobre minha ótima estadia em Franca, minha passagem "tocada" pelo norte de São Paulo, onde peguei trechos com Pendentes Longas (um caminhoneiro me ensinou esse termo, são as baixadas ou lançantes sem curvas. Só podia ser gaúcho o caminhoneiro...), e minhas dez horas e pouco de pedal overnight.

Abraços, vou catar um orelhão (é o jeito) e descansar muuuuito.

Monday, January 29, 2007

Dia 56 - Brodowski, SP - 3.334km (72)

Olá, caros amigos leitores!

Depois de uns dias de descanso na casa dos meus mais novos amicíssimos, Eliana e Rodrigo Telles, criadores do Clube de Cicloturismo do Brasil e fabricantes dos alforjes Arara-Una, em Franca-SP, retomo a rotina de cafés da manhã de hotel, virar o meio-dia sob o mormaço a pino, e correr para alcançar a tão sonhada atualização do blog (as fotos, essas sim pelo jeito vai demorar mais). Nunca esquecendo a programação do horário nobre da Rede Bobo.

Como NÃO era esperado, na terça-feira muito, muito cedo, meus olhos se abriram e minha mente sentiu-se desperta. Fiquei com a impressão de já estar pronto para acordar, mas obviamente tudo estava escuro e quieto, e preferi não olhar no relógio para não contaminhar minha mente ainda potencialmente sonolenta com neuras de horário. Todavia, cerca de dez minutos depois, o despertador tocou. Já eram cinco e meia.
Me levantei sem sofrimento, pois pra isso serve dormir cedo depois de passar o dia comendo e não fazendo nada. Comecei a me arrumar, vi que estava caindo um chuvisco fininho mas inofensivo, e perdi um pouco da pressa ao ver que, àquele horário, tudo estava totalmente escuro, e a padaria obviamente fechada. Erro meu, pois por postergar propositalmente a minha arrumação relâmpago, fui surpreendido no meio da atividade pré-pedalatória pelo clarear completo do dia, deixando ver além do chuvisco o céu completamente nublado. Apesar disso, não estava frio.
Terminei de me arrumar já bem mais acordado, o dia bem mais claro, fui empurrando a bici pesada pela íngreme e semi-escorregadia rampa de acesso à rua, abri o portão, levei a bici para fora, fechei o portão, e fui seguindo pedalando em primeira marcha pela rua inclinada e pavimentada com seixos amarelados, também um pouco escorregadios. Fui seguindo, fazendo as curvinhas nas esquinas, cumprimentando a relativamente grande quantidade de pessoas que já estava acordada àquela hora. Não surpreende que fechem o comércio cedo, se às seis da manhã já tem um monte de coisa aberta! No posto de gasolina, pela última vez, com os dedos cruzados (possuía somente vinte reais ou menos na carteira, então), tentei o golpe do Visa Electron. Cheguei lá, o rapaz do posto me atendeu, tentou passar o cartão, e de novo a linha estava indisponível. "Ai", pensei. Mas ele disse "vamos tentar uma gambiarra" e foi lá atrás do emaranhado de cabos das maquininhas e fax e computador, trocou lá uns cabos, passou de novo o cartão, e dessa vez a coisa funcionou, lá fui eu feliz tomar o café da manhã, com quase setenta merréis no bolso!
Na padaria, também totalmente aberta e funcionante, comi dois sanduíches de presunto (no estilo Chaves, com pão de sal ou cacetinho) e dois cafés com leite. Para levar, mais dois sanduíches de presunto e uma massa doce com cobertura de coco e recheio de creme. Uma curiosidade: a menina ficou quase assustada quando eu perguntei se tinha nata para passar no pão. Acho que ela pensou que eu também ia pedir borra de café para comer de colherinha, ou algo assim. Foi sem nata mesmo, mas estava muito nutritivo e saboroso. Depois do café, saí pedalando, satisfeito com a perspectiva de ter ainda várias horas de luz para realizar a travessia por território semi-desconhecido com relevo bastante acidentado e prognóstico de vários trechos empurrando a bicicleta.
O trecho até São José do Barreiro, já realizado na ante-véspera, não apresentou grandes novidades. Eu me sentia bem por estar com os alforjes e saber que não teria de pedalar tudo aquilo novamente para voltar para o dormitório, e como ainda era cedo, pude pedalar sem camisa, o que melhorou bastante a refrigeração do corpo. Ao passar por uma pousada, vi que um magrão ajeitava uma bicicleta ao lado de um carro com outras tantas bicicletas presas ao teto. Certamente se preparavam para alguma pedalada trilhesca por lá, mas mesmo tendo ficado com vontade de uma conversa, a certeza de no mínimo meia hora de conversa, com todas as perguntas que já sabíamos que iríamos fazer, me levou a seguir viagem anonimamente, sem dar nem uma abanadinha. Que feio.
Ao chegar a São José do Barreiro, pega-se à esquerda em direção à Serra do Rolador. A vila tem um punhado de ruas, muitas pousadas, mercadinho, é bem pequena. Logo ao passar por ela, subindo uma lomba suave, a estrada já fica mais estreita, e a direção indicada pelo GPS aponta para uma cadeia de morros crescentes, estando os morros mais distantes encobertos pela neblina, àquela hora. A estrada segue mais ou menos bem por uns três ou quatro quilômetros, quando aparece a entrada de uma pousada. Ao passar, eu pensei que a estrada fosse aquela, mas não, é só a entrada da pousada mesmo, o GPS apontava uma outra estradinha, essa sim bem mais estreita e cheia de erosões, com um pouco de capim no meio. Ao fazer a voltinha para pegar o caminho certo, vi que algum outro ciclista já havia cometido o engano, pois a freadinha que dei com a roda traseira deixou uma marca sobre a mesma freadinha que o colega desconhecido deixou. Dali em diante, com a estrada já menor, iniciava a subida, bastante puxada, mas possível. No caminho, encontrei um agricultor que me disse que aquela subida ainda tinha uns 2km, e depois dela ficava mais plano. "É chapadão lá, então?" e ele "Ih, o chapadão tá muito longe ainda!". Menos mal que ainda era de manhã cedo...
Segui subindo, e de fato logo a inclinação diminuía. À minha frente, os morros altos que viriam. À minha retaguarda, a encosta da Serra da Canastra, onde era possível ver uma parte da cachoeira da Casca D'Anta, e ao meu lado esquerdo, a paisagem rural com vales e encostas. Mais alguns quilômetros, e a estrada começou a ficar realmente podre, com erosões enormes, piscinas de pedras e córregos atravessando a estrada. Nesse trecho, depois de pegar água numa vertente, comecei a empurrar, e mesmo empurrando a coisa estava puxada, estrada muito íngreme, mas muito bonita, em termos de paisagem. Realmente por ali até jipes teriam dificuldades de passar, em alguns trechos a estrada só resistia porque a erosão já havia atingido a pedra, e havia até uma cachoeira que corria por sobre a estrada, em certo ponto. Ali, a neblina já me rodeava, mas mesmo assim o campo de visão estava suficiente para ver algumas partes mais baixas da estrada, por sobre a beirada cheia de mato rasteiro, e alguns morros ainda mais altos, com vestígios de prováveis trilhas que levavam aos seus cumes. Decerto com tempo bom a paisagem lá deve ser uma maravilha, se mesmo com tempo daquele jeito já estava bastante ao agrado de quem gosta de se enfiar em pedreira, como eu.
Logo em seguida, atingi uma parte mais plana, que creio ser o tal Chapadão da Babilônia. Logo no início dessa parte, a estrada já fica melhor, pedalável, lisa, em meio a um gramado com marcas de pneu de caminhonete, só aqueles dois trilhos paralelos. Havia uma casinha de madeira ao longe, quando cruzei uma porteira, que nem sequer trancada estava, apenas encostada. Depois da porteira, a estrada ia alternando entre trechos bons e destruídos, e nesses últimos havia várias rotas alternativas, provavelmente feitas pelo gado e por motoqueiros insatisfeitos com a estrada existente. Eu consegui, devido à ausência de partes íngremes, ir me equilibrando, em marcha leve sobre as valetas e pedras do caminho. Pouco depois, em um ponto mais alto, gramado, com algumas pedras maiores à beira do caminho, já passando das dez da manhã, resolvi parar para comer um doce, a dita massa doce com recheio. Fiquei com arrependimento por não ter comprado uma dúzia, porque o recheio era super docinho e delicioso, além do que eu já estava com fome mesmo. Sentado ali na pedra, agora com camisa devido ao chuvisco leve e à brisa fresca da altitude de cerca de 1300m, tentei escutar algum ruído que não fosse do vento nas folhagens, mas não consegui. Realmente, a sensação de paz e tranqüilidade dali é grande, ainda mais quando a neblina não deixa enxergar mais do que uns cem metros em qualquer direção. Terminado o mini-banquete, de volta à bici, segui pedalando sem pressa por aquele lugar esquisito e fascinante (adjetivo que odeio, parece coisa de samba-enredo).
A partir dali, os caminhos ficaram menos nítidos, consistindo em rastros esparsos de caminhonete por entre enormes pastos com alguns grupos de bois pastando por ali. Em determinado momento, o GPS indicava uma bifurcação. Ao chegar na tal bifurcação, o que acontecia é que a estrada por onde vinha (apenas dois rastros paralelos de pneu sobre o capim baixo) fazia uma curva para a direita. Bem mais longe, à esquerda, outros rastros muito menos marcados seguiam, algumas vezes quase sumindo, pelo pasto, e se eu não estivesse com o GPS jamais seria possível saber que havia qualquer outro caminho por ali. Já meio com a pulga atrás da orelha, confiei no meu fiel amigo eletrônico, e fui indo, fazendo amplas voltas no meio das baixadas de campo. Ao longe, outros ramos do chapadão ondulado eram visíveis entre a neblina, MUITO ao longe. Como disse o site www.viagensmaneiras.com.br, ali é o lugar certo para quem gosta de muito espaço (esse site tem muitas dicas underground sobre roteiros de ecoaventurismo no Brasil inteiro). Em determinado momento, a estradinha quase invisível descia por uma encosta gramada, depois fazia uma curva e ia em direção a outra encosta gramada, uma subida. No meio daquela dominância absoluta das gramíneas, uma árvore solitária, onde apoiei a bicicleta e comecei a me afastar para fazer uma foto no estilo "espaço amplo". A cada olhada para trás, e no visor da máquina, via que era necessário me afastar mais para dar uma boa noção da amplitude do lugar. Mesmo depois de quase não enxergar mais a mancha vermelha da bicicleta no visor, ainda não tinha conseguido incluir nem um terço da largura das colinas gramadas que faziam parte do quadro. Realmente um lugar que merece ser revisitado.
Saindo dali, algumas adaptações para contornar subidas quase impraticáveis (eram as que estavam no Gepeto), e a paisagem continuava surpreendendo: naquele ponto, um mar de cupinzeiros deixava a grama toda ondulada, como se fosse a superfície de um planeta daquelas histórias de ficção científica bem palha, atrás das quais os alienígenas baixinhos ficavam escondidos. O solo, naquele ponto, era meio escorregadio, e quando fui parar a bici para fotografar os cupinzeiros, a bici andou uns dois metros com a roda da frente travada, escorregando. Credo!
Em algum momento, teria de haver uma descida. A próxima bifurcação - que estava de fato ficando mais próxima - possuía um ponto indicando cachoeira. Cachoeira significa desnível, e eu tinha medo de que eu saísse na parte alta da tal cachoeira sem ter como descer. Mas enfim, se as trilhas de caminhonete seguiam em frente, deviam sair em algum lugar, não? Será?
Enfim, depois de outra porteira, apareceu a tal descida. A paisagem era muito bonita: à esquerda, morros cobertos por campos e pedras e manchas de mato sobre o relevo recortado. À direita, lá embaixo, uma planície com diversos campos cultivados, naquele padrão típico composto de diversos retângulos, cada um de uma cor diferente. Do outro lado do vale em frente, apenas neblina. E no chão logo à frente, uma descida tão íngreme que acho que mesmo um cabrito teria alguma dificuldade de passar por ela. No chão da trilha, apenas pedras, daquelas que são constituídas de vários estratos paralelos, e vão quebrando aos quadradinhos. Os estratos tinham um certo ângulo de inclinação que não era horizontal, nem paralelo à estrada, nem paralelo à inclinação da trilha, o que fazia com que esta fosse uma sucessão de rampas descompensadas, degraus pontiagudos e calhas que dificultavam que qualquer veículo com rodas seguisse algum caminho determinado. Sem falar da inclinação absurda, já que o cara que abriu a picada provavelmente disse "eu quero ir para lá" e virou o jipe direto para o alto e avante.
Eu até tentei descer andando, mas logo desisti, pois como já disse aqui antes, gosto das minhas vértebras todas uma em cima das outras, e dos meus dentes todos dentro da boca. Fui descendo com a bici do lado, segurando os dois freios, usando ela mais para me apoiar do que para outra coisa, com todo o cuidado para que o sacolejo ficasse dentro do limite de tolerância dos alforjes. A descida ocorreu a uma velocidade média de menos de 3km/h, e se eu estivesse com minha full, em tempo seco talvez eu tivesse descido tudo. Daquele jeito, sei não. Lá no finalzinho, quando a inclinação diminuiu, finalmente pude praticar minha nova modalidade de ciclismo extremo, o downhill com alforjes e sem suspensão. Muito emocionante, lembrando bastante o bike-trial, devido à baixa velocidade e às paradinhas para pensar por onde passar (sem tirar o pé do pedal).
Vencido esse desafio, o GPS indicava uma bifurcação, quando provavelmente sairia em uma estrada maior, por onde já havia visto alguns veículos passando, enquanto eu descia. Tudo muito lindo, não fosse por um rio sem ponte. A estrada apontada surgia direto de dentro da água, na margem oposta do riacho, que naquele dia estava bem cheio. Pensei "Ah, não, isso não...", achei que fosse necessário procurar uma pinguela, ou mesmo tirar todos os alforjes da bici para cruzar o riacho, mas no fim acabei atravessando a pé, enxergando as pedras maiores no fundo e vendo que a água não passava do joelho. Voltei, peguei a bici, e lá fui eu empurrando o cafão sobre o leito de areia grossa, estando até mais equilibrado agora que a bici me dava algum apoio. É claro, os cubos, toda a relação e a metade inferior dos alforjes ficaram embaixo da água, mas nada que causasse prejuízos, pelo contrário: a corrente ficou mais limpa.
Do outro lado do rio, a estradinha escorregadia logo levava a uma estrada maior, e enquanto eu tirava a areia de dentro da sapatilha e das meias, começava uma chuva um pouco mais grossa. Retomei a pedalada em uma subida, que levava a uma passagem para o outro lado do morro, lá em cima. Enquanto eu subia, em marcha leve, olhei para trás e vi, na encosta verde, lisa e íngreme do chapadão lá atrás, a lista brilhante e quase branca que refletia o céu nublado, serpenteando morro acima, parecendo mais um desmoronamento ou um lajeado com água escorrendo do que uma trilha. Como disse, credo!
Do outro lado da subida, mais surpresas: à minha frente, um profundo vale, com uma crista de morros bem altos, cobertos de verde e paredões de pedra. Ao fundo, uma rede de estradinhas, lá embaixo. E a própria estrada onde eu estava passou a ser pavimentada com os bloquetes de concreto hexagonais. Logo vi por que, pois a chuva criou vários trechos em que a estrada se transformava num rio, sendo totalmente coberta pela pura e cristalina água corrente da chuva que caía. À direita, enquanto descia com alguma cautela (e falta de pressa, para conseguir ver a paisagem inusitada), era possível ver muitos e muitos cursos temporários de água, descendo a encosta inclinada, e vindo em direção à estrada. À esquerda, um baixo cordão de calçada, e o "precipício" de onde vinha o barulho de muita água corrente. Somente se podia ver a encosta esquerda da estrada vários metros abaixo, coberta de mato com alguns rasgos provocados por correntes de água. É fácil entender por que razão o trecho da estrada foi calçado com blocos de concreto...
Lá embaixo, já no piso de saibro novamente, uma curva à esquerda, cruzando um rio maior, depois uma curva à direita, novamente subindo, já na encosta oposta do vale. Naquele ponto, a chuva apertou, caindo com intensidade suficiente para se tomar um banho de sabonete ao ar livre, coisa que não fiz. Fui subindo, em meio à paisagem despovoada. Apenas em uma ou duas casas alguém casualmente foi olhar se a chuva havia mudado, me vendo e retribuindo meu aceno. Numa dessas casas, pude ver, já vários metros mais acima na subida, ao olhar para trás, que aquela pessoa havia chamado outras, e estas me olhavam com espanto. Que gente, nunca viram um ciclista carregado subindo uma estrada debaixo de temporal?
Quando a chuva diminuiu, encostei a bicicleta e comi um dos sanduíches, não lembro que horas eram, mas já passava da uma, acho. Naquele ponto, fui passado pelo primeiro veículo depois de sair de São José do Barreiro, a uns 20km e várias horas atrás. Na parede esquerda do vale, uma encosta de chapada onde podia ver ao mesmo tempo seis ou sete quedas d'água formadas pela chuvarada. Logo acima da estrada, muitos bois alpinistas iam pastando com calma entre as diversas calhas naturais que vertiam água ruidosamente. Do outro lado, via-se a transição de uma quase planície para uma parte mais inclinada, cheia de bois alpinistas (também chamados de vacaranhas), chegando enfim às paredes verticais da chapada da Babilônia, encimadas por topetes de capim. Alguns proprietários de terra espertamente construíram suas casas lá no meio do reino das vacaranhas, possuindo assim uma vista de dar inveja a qualquer urbaninho. Tomara que eles nunca tenham que sair de noite para ir com urgência ao médico.
Depois disso, uma descida generosa, chegando a uma ponte sobre um rio obviamente transbordante, mas relativamente estreito. Ali, aparentemente o "portal de entrada" para o complexo turístico da Babilônia, a estrada finalmente ficava mais "mansa", e enquanto eu pedalava, olhava para trás para ver as escarpas enevoadas que iam diminuindo à medida que a distância aumentava. Já há algum tempo eu vinha sentindo uma sensação bem desagradável de assadura no saco, e freqüentemente tinha que dar uma ajeitada na bermuda molhada, o que causava bastante dor e desconforto.
Mas a jornada só termina quando acaba: apesar de achar que eu deveria descer muito para chegar ao meu pretendido destino, a cidade de São João Batista do Glória, fui brindado, em uma estrada cheia de poças de água e de barro, com a genialidade da engenharia mineira: após uma enorme descida que chegava ao pé de um morro bicudo, a estrada, ao invés de contornar o morro e continuar em direção à já visível planície lá embaixo, SUBIA diretamente até o topo, para descer do outro lado. Como chovia naquele momento, tive de contar, já na parte alta da subida, que o pneu fosse cavocando o barro por onde ele passava, indo agarrar o chão firme alguns centímetros abaixo, mantendo a tração e permitindo vencer os degraus das valetas e sair de buracos embarrados. Coisa de louco.
Mais adiante, apesar de a inclinação das lombas diminuir, a sucessão contínua de sobe e desce, sempre com desanimadores e muito escorregadios retões, me fez sentir realmente cansado, até por já estar há várias horas pedalando, empurrando e ofegando, louco para chegar de uma vez, e já achando que, dependendo da hora e do aspecto da cidade, seria melhor ir até Passos, por mais 16km de asfalto. Mais frustrante ainda era ver os motoqueiros com as motos 125cc passando a uns 70 por hora entre a lama visguenta sem qualquer sinal de desequilíbrio. Malditos.
Na cidade, de fato pequena e não muito aconchegante, parei em um boteco para comer um wafer e dois sucos de pêssego em caixinha. Sentado, enquanto comia, senti alguns blecautes no cérebro, e achei também prudente tomar um café preto para dar uma avivada. Funcionou.
Segui, peguei informação num posto de gasolina, onde coloquei óleo na corrente e calibrei os pneus, e segui em direção a uma balsa sobre uma represa, na direção de Passos. Depois da balsa, me disseram, só uma subidinha, depois tudo plano até Passos. Três quilômetros de asfalto e uma longa descida após o posto de gasolina, uma pequena balsa, cuja tarifa para bicicletas era de um real. Do outro lado a tal subida, que logo terminava, mas em seguida era sucedida por mais quilômetros e quilômetros de subida suave porém quase constante. Realmente esse povo não sabe nada de subidas, ao menos não cicloturisticamente. A assadura do saco já estava muito preocupante, e até a mais sutil ajeitadinha estava ficando muito dolorida. Seria reação a algum vestígio no forro da bermuda? Contato com sujeira da luva? Mas não há mal que nunca se acabe, e logo estava no perímetro urbano de Passos, que é bem grande. Fui arriscadamente serpenteando pelas ruas ao redor do centro, onde pegava com um e outro informações para chegar na praça, onde havia alguns hotéis. Os motoristas não querem saber de ninguém na frente deles nas ruas estreitas, de preferência nem outros motoristas, que dirá pedestres ou ciclistas. As faixas de segurança vivamente pintadas em todos os cruzamentos são sumariamente ignoradas pelos motoristas que só reduzem a velocidade para ver se vem outro carro, quando reduzem. Tentei ir no hotel Imperador, mas era muito caro. Acabei indo no Grande Hotel, meio espeluncóide (deve ter sido melhor no passado), onde devido a dificuldades em encontrar um quarto com um chuveiro sob o qual eu conseguisse ficar em pé E cujas lâmpadas funcionassem, consegui um certo desconto para ficar duas noites. Tive de explicar ao rapaz da portaria o motivo de andar de pernas abertas pelos corredores, durante a escolha dos quartos. Depois do banho com lavagem de roupas, e dor lancinante nas regiões baixas, cuja pele já estava com textura de casca de tangerina, fui à cata de farmácia, LAN e restaurante, todos na rua que ia em direção à outra praça (sim, duas praças, e bem grandes, a de cima com uma fonte luminosa restaurada). No caminho, fiquei espantado com a quantidade de lanchonetes simpáticas fechadas, assim como inúmeras lojas fechadas (horário de verão é fogo, de fato já eram quase sete da noite e estava bem claro). Acabei comendo pastel de vento na lanchonete duns chineses. Fui atendido pelas atendentes, que já estavam contando os segundos para fechar a pastelaria. Suco, só de laranja, já prontinho dentro de uma jarra. Ao menos era barato.
Com as farmácias, nova frustração: na primeira que achei, fui atendido pelo farmacêutico, explicando-lhe que precisava de alguma pomada com hidrocortisona, um corticóide de baixa potência ideal para reações alérgicas, dermatites de contato e urticárias na pele. Ele não tinha, tentei ver se tinha algo equivalente, mas nada. Fui a algumas de manipulação, uma até do lado do hotel, mas para variar estavam fechadas. Acabei achando só em uma farmácia LÁ em cima, o produto chamava Berlisol, 10 reais o tubo com 30 gramas. Mas era necessário.
Fui à LAN, onde fiquei um tempão, tendo já passado a pomada antes mesmo de sentar à frente do micro. Depois, seguindo a recomendação do rapaz do hotel, fui à Cantina da Mama, que uns rapazes lá compraram recentemente de uns italianos, tendo aprendido as receitas originais. Comi um penne ao molho rosé com bife de frango empanado, acompanhado de um suco de polpa de manga, assistindo o Bog Brother em uma enorme televisão. Muito saboroso o prato, e ótimo o atendimento. Voltei ao quarto para assistir a minissérie Amasiona (uma amásia grande), não sem antes fotografar um belo cogumelo que crescia em um canto do teto no corredor. Dormi com a felicidade de quem não tem que pedalar no dia seguinte.

Vai ser fácil contar o que aconteceu na quarta, pois passei seis horas na LAN. Acordei, passei hidrocortisona no saco, agora já não mais vermelho, apenas rosado. Fui tomar o café do hotel, em seguida voltei ao quarto, descansei mais, e saí para pegar o seguro desemprego na caixa federal, depositando em seguida no banco do brasil. A procura frustrada por um lugar decente para almoçar me levou de volta ao Cantina da Mamma, onde havia self-service por quilo. Servi um prato com lasanha de presunto, massa com queijo, filé à parmegiana, alguma saladinha e pudim de mamão. Gostei tanto que repeti, um prato idêntico. Para acompanhar, suco de manga. Saindo dali, fui à cata de um supermercado para comprar balas, minhas companheiras de LAN. Fiquei um tempão numa marquise, sentado em um degrau, por causa da chuva. Se eu tivesse um quadro de pulseirinhas, comporia a típica cena do hippie vendendo coisas. Como não tinha, devo ter passado por morador de rua, mesmo. Quando a chuva diminuiu, fui ao super, mas a bala menos horrível que pude achar foi a sete-belo. Dali, seis horas de LAN, depois uma janta na Cantina. Dessa vez, espagueti à bolonhesa com queijo ralado e tempero verde. Uma delícia, melhor que no dia anterior, o pessoal aprendeu mesmo a receita dos italianos. À noite, Big Bronha e cama, pois havia jogo de futebol depois.

Thursday, January 25, 2007

Dia 52 - Capetinga, MG - 3.185km (65)

Caros colegas, conforme prometido, eis-me.

A noite de sono de sábado para domingo foi ótima, e o despertador tocou cedinho no domingo. Apesar disso, eu estava bastante cansado, com preguiça, e o pior, chovia lá fora. As horas em que fiquei rolando na cama foram palco do velho impasse entre ter de levantar, para ver duma vez algo que eu não teria a vida inteira para ver quando quisesse, e NÃO QUERER levantar, para não ficar horas patinando na estrada molhada e no chuvisco fininho para ver mais uma cachoeira (tenho uma teoria de que, exceto em raros momentos, depois da vigésima cachoeira vista na vida, são todas iguais). Já que a distância até lá não era um exagero (provavelmente uns vinte e poucos), acabei levantando perto das onze horas, e fui direto almoçar no "refeitório" da pousada, já com bicicleta e tudo. O cardápio foi muito parecido com o do dia anterior, comida caseira, tentei me alimentar bem para não sentir fome muito cedo, e me mandei.
Eu havia olhado no Google Earth, como é o parque da Canastra, e fiquei com a impressão de que o caminho de Vargem Bonita até a Casca D'Anta percorreria o vale do São Francisco, devendo portanto não ter muita variação de altitude. Entretanto, logo após sair do perímetro urbano, já me aguardava uma descida horrível, apesar de curta, e do outro lado obviamente uma subida tão horrível quanto. O chão estava molhado, fofo em alguns pontos, e com várias poças de água das quais eu tinha de desviar algumas vezes. Assim foram os quinze quilômetros até a vila de São José do Barreiro, um sobe e desce de matar, com várias vistas bonitas do rio, algumas vezes bem de perto, algumas vezes bem do alto. Se não estivesse cheio o rio e um pouco frio o dia, haveria muitas oportunidades para tomar um banhão. Nas partes altas da estrada, era possível ver todo o paredão sudoeste da Canastra, e algumas fotos foram feitas nesses pontos, muitas ficaram parecidas, mas é irresistível a tentação de bater fotos daquele lugar, mesmo com o dia nublado e chuviscando.
Um pouco antes de chegar ao Barreiro, um casal em um Ford Ka parou um pouco mais na frente e fez algumas das perguntas básicas do pacote-de-interrogatório-do-cicloturista-de-longe. Eles perguntaram como estava a estrada pros lados da cachoeira, e eu disse que devia estar boa, e que se eles já haviam chegado até ali, deviam obviamente continuar. Assim também continuei eu, e devo dizer que me senti quase culpado, pois a estrada dali para a frente ficava podre, com poças gigantes de lama vermelhinha, com vários monstros destruidores de rodas e protetores de cárter escondidos lá no fundo, labirintos de valetas compridas acompanhando a estrada, e pontos perigosamente escorregadios, em declive. Fui seguindo assim, tomando muito cuidado para não beijar o solo pátrio, sofrendo bastante com as subidas horríveis e com o cansaço/preguiça/digestão trancada. De repente, no meio de uma subida, com a estrada já bem estreita, pude avistar o topo da queda da Cascadanta (é mais fácil escrever assim). Fui indo, dividindo a atenção entre a vista crescente da cachoeira, as armadilhas da estrada e a indicação do GPS, que mostrava menos de três quilômetros restantes. Pouco antes da portaria do parque, é possível ter uma vista da queda praticamente inteira, e ali parei para descansar e fotografar. Seguindo, há uma descida, uma ponte, e uma curta subida até o parque, em cuja portaria há um estacionamento para veículos. Conversei com os guardas e paguei uma entrada de três reais, e eles disseram que eu poderia entrar com a bicicleta se quisesse. É claro que eu quis, e desci pedalando a muito estreita estrada de acesso à cachoeira, por onde voltavam alguns turistas a pé. A área de camping, à beira do rio, até que apresentava uma estrutura legalzinha, com banheiros e quiosques com telhado e mesas, mas o gramado estava virado numa savana. Procurei algum ponto balneável por ali, mas acho que o rio só fica bom para banho com menos água, de modo que apenas tomei uns goles e molhei o rosto, os braços e a cabeça, continuando logo depois rumo à cachoeira. Saindo da estrada, começa uma trilha estreita, e devido às pedras deixei a bicicleta presa em uma árvore com o cadeado. Subi caminhando rápido, entre um e outro visitante que cautelosamente se equilibrava entre as rampas escorregadias e os galhos enlameados. Ao chegar na cachoeira, uma mistura de encantamento pela bela e alta queda d'água (mais de 180m), e da sensação de não estar vendo assim algo de tãããão surpreendente. O pessoal do centro do país vai me exconjurar, mas devo dizer que as cachoeiras da nascente do Rio dos Sinos e a da Pedra Branca, em Caraá-RS e Terra de Areia-RS, respectivamente, não devem muito em beleza à Cascadanta. Por outro lado, se unirmos a beleza da cachoeira com a beleza da encosta de chapada da qual ela despenca, e de todo o contexto topográfico e ecológico envolvido, é claro que vale a visita, e muito. Tenho a impressão que o legal mesmo deve ser subir a trilha difícil que dá acesso à parte alta da cachoeira, mas eu estava muito podre para fazer isso, de modo que desci tudo, depois de muitas fotos e algum tempo me refrescando no chuvisqueiro do pé da cascata - lá encontrei, inclusive, o casal do Ford Ka, eles disseram que não foi tão terrível assim, acho que o Kazinho deve estar em processo avançado de fossilização, já. De volta aos quiosques, aproveitei o isolamento e o teto para me deitar no chão e dar uma cochilada rápida. Eram já 15:00 quando me levantei e segui viagem, havia tempo de sobra para não perder a janta. A distância marcada pelo velocímetro da bici foi 25km entre Vargem Bonita e o parque. Fui então pedalando sem pressa, já com idéia de parar em determinado bar que eu tinha visto mais atrás, para comer. Chegando lá, as placas presas na cerca, antes do bar, diziam "doces", "sucos naturais", essas coisas. Na verdade, o cara não tinha assim tanta variedade, e eu acabei comendo três chocolates Laka e tomando dois Toddynho, o que prontamente recompôs muita da minha energia pedalante. Fiquei ali um tempo, o suficiente para conversar com uns capiaus que passavam por lá. Coisa nunca antes vista: um deles entrou no boteco, e tomou APENAS UM COPINHO DE PINGA, saindo logo em seguida, nada de papo furado, nada de novos copos. O mundo ainda tem salvação...
A volta, agora que eu já conhecia o caminho e não tinha possibilidade de me iludir com planícies de areia bem durinha e lisa, foi mais tranqüila, ao menos psicologicamente. Aproveitei para fazer algumas fotos da estrada, nos piores trechos, e como agora chovia, em duas descidas eu tive de sair da estrada para poder frear, já que a parte rodável da estrada na verdade estava rodopiável, de tão escorregadia. Percebi que é necessário andar nas partes onde o piso apresenta areia, que aí o pneu segura e dá pra controlar a bici. Nas partes que só têm argila, caso esta esteja molhada, a bicicleta se transforma num esqui. O que não impede, aliás, os motoqueiros de passarem a milhão, ignorando totalmente as leis da física, e ficando assim automaticamente imunes a qualquer tipo de queda. Malditos!
Já perto da cidade, havia uma placa indicando Cachoeira e Praia da Chinela, uma das poucas recomendações viáveis dada pelo atentente do Baú de Lendas, na véspera. Peguei o rumo da placa, uma descida tão escorregadia quanto as citadas acima, e desci como uma bichona, bem pelo cantinho, onde havia um pouco de areia. Chegando na ponte, que era sobre o rio São Francisco (lembrem: nesse ponto apenas um pouco mais do que um riacho), olhei à esquerda, à direita, e não vi muito sinal de praia nem de cachoeira. Dei meia-volta, pretendendo passar por uma porteira que vi mais atrás, quando me deparei com a quase oculta entrada de uma trilhazinha. Já estava perto da cidade mesmo, pensei, não custa fazer umas explorações por aí. Me dei bem, pois a trilhazinha conduzia, logo após uma cerca fácil de pular, a uma prainha bem generosa. Naquele ponto, a várzea do rio era bem larga, mas era ocupada por uma ampla meia-lua de areia grossa e pedras redondas, que formavam um "banco de areia", obrigando o rio a fazer uma curva ao seu redor. Na parte "rio abaixo" da meia-lua, o refluxo de água formava uma grande e relativamente calma piscina natural. Fui com a bicicleta até uma das bordas do banco de areia e pedras, achei uma pedra maior para encostá-la pelo pedal, como se a pedra fosse o cordão da calçada (é mais fácil fazer isso se a bici estiver numa marcha mais pesada, pessoal), e obviamente comecei a estudar uma boa estratégia para tomar um belo banho. Tirei a sapatilha e a meia, e fui caminhando até a extremidade "rio acima" da praia. Ali, depois de algum micro-fiasco para entrar na água, relaxei e deixei a correnteza me levar até perto da bicicleta de novo. Como a passagem de água era estreita, esta passava em alta velocidade, e foi muito divertido ser levado pelo rio, até porque naquele ponto ele era raso e não havia perigo. Ao chegar ao piscinão natural, que era bem fundo, dei umas braçadas, e saí da água, que não estava tão fria. Dei um tempo ali, pus a camisa para escorrer, e resolvi repetir o passeio. Na ida para o ponto de partida, achei uma parte do banco de areia que havia acumulado um lodo bem fininho. Lembrando os tempos de infância, fiquei sapateando ali dentro, depois peguei uma bolinha de lama na mão e comecei a jogá-la de uma mão para a outra, notando uma interessante mudança na emulsão coloidal formada pela lama, que passou de um gel (emulsão de partículas líquidas em base sólida) para um sol (emulsão de partículas sólidas em base líquida). Como acabei de ver na Wikipédia que o estudo dos colóides é totalmente experimental e inconclusivo, e como ninguém estava lá para ver, vão ter que acreditar em mim, aconteceu mesmo. O fato é que aproveitei a semi-liquefação da lama para aplicá-la também nos braços e pernas, ficando com aquele aspecto de monstro do pântano (resisti à idéia de passar no rosto também, afinal eu não ia conseguir ver e não ia pegar a máquina com as mãos sujas de lama). Depois do passeio, onde a lama foi lavada, senti que estava com aquele cheiro de girino misturado com cobre oxidado, típico das lamas, mas achei que um sabonete resolveria o problema com facilidade. Como já eram seis e meia, tirei as pedrinhas dos pés, calcei a sapatilha, vesti a camiseta úmida, e me mandei.
Na janta, novamente o mesmo cardápio, e comi bastante, indo logo em seguida para o quarto, tomar banho, lavar roupa e assistir o Fanático e o Big Bronha. Devem estar estranhando que eu esteja tão apegado em um programa superficial, mas a superficialidade neste caso é até vantagem, pois deixa o cérebro de molho, sem gastar muita energia, assim como o corpo, atirado na cama. E, de certa forma, me identifico com aquele bando socado em uma casa que não é a deles, e eu aqui, longe da casa que é a minha. É interessante também ver a evolução dos parezinhos românticos, com o bem-vindo atributo da relativa imprevisibilidade, que falta às novelas. Só não pode é criar dependência, ou então ficar xingando os participantes, aí não, pode parar! Nesse dia ainda assisti o Domingo Maior, mas não valeu à pena. Devia ter desconfiado do apelativo título do filme: "Baladas, Rachas e um Louco de Kilt". Lixo puro. Nanei em seguida, com o despertador desligado.

O dia seguinte, segunda feira seria o merecido dia de descanso absoluto, necessário antes do deslocamento sobre a Serra do Rolador até a cidade de São João Batista do Glória, meu próximo destino. Acordei naturalmente, muito tarde, e fiquei horas rolando e me espreguiçando na cama. A manhã estava até meio fresquinha, e pude curtir um edredonzinho, que fazia tempo que não usava. Saí me sentindo meio inchado, para almoçar, novamente o cardápio caseiro com arroz, feijão, carne, legumes e, desta vez, torresmo. Tomei guaraná. Após o rango, fui ao posto de gasolina lá perto da saída para a cachoeira, tentar fazer o lance do Visa Electron: registrar R$ 55,00 e pegar de volta uma nota de cinqüenta, mas naquela hora o cara não tinha dinheiro trocado. Aproveitei para tomar um sorvete na padaria em frente, e um creme dental na farmácia, que havia esquecido o meu em Piumhi (tou dizendo, só não esqueço a cabeça porque tá presa, no domingo eu fui à Cascadanta sem luva, e só notei na metade do caminho. Ao menos minhas mãos não estão mais tão brancas). De volta, aproveitei para conhecer a tal prainha que fica no final da rua onde fica o meu quarto. É uma prainha bem modesta, quase sem local seguro para tomar banho, ao menos não com aqule volume, mas lá tem um bloco de cimento em forma de banco, então tirei a camisa, a estendi sobre o cimento, e deitei ali, para curtir uma sesta. É impressonante como aquela cidade é silenciosa, se não fosse pelos passarinhos e pelos eventuais turbilhões formados nas irregularidades da barranca da margem oposta do rio, o silêncio seria praticamente total. Depois de nada dormir, mas muito descansar, voltei ao quarto, escovei os dentes e deitei mais um pouco. Como disse, o dia era de descanso.
Mais tarde, fui novamente ao posto de gasolina, mas como estava com fome passei em um mercado e comprei um wafer de limão, que se não é a melhor coisa do mundo, até que é bom para dar uma enganada. Dessa vez, o lance do Visa Electron não rolou devido à indisponibilidade de linha, e eu já estava com medo de ter que seguir viagem relativamente descapitalizado. Fui à padaria em frente, e comi um delicioso sanduíche de presunto (aquele do Chaves, com pão de cacetinho, aqui chamado pão de sal) acompanhado de um copo de café com leite. Voltei lentamente para o quarto, onde cheguei com um certo calor. Resolvi tomar um banho de rio, mas depois de trocar a roupa pelo traje de banho, começou a chover de novo, e aí eu deitei mais um pouco, esperando até a hora da janta. Lá fui eu, comi meio estufado ainda (embora tenha repetido uma ou duas vezes), e fiquei sabendo que havia na cidade, na verdade na pousada de cima, um outro cicloturista, que havia chegado nas mesmas condições que eu: esquálido, esfaimado e ávido por um pouso em um rango. Ele já havia jantado, ali mesmo, e logo que a chuva passou eu fui até ali, conversar com ele.
Era um cara de Arcos-MG, que estava com dez dias de férias, e saiu para dar uma volta. Estava vindo da parte alta do parque, tendo percorrido uns 70km de estrada de chão com sobe e desce, naquele dia. Se chama Eduardo, tem 34 anos, trabalha como mecânico de injeção eletrônica, estuda psicologia e sonha em ser médico (totalmente o oposto de mim, hehe). Ficamos conversando inicialmente na pousada, mas depois fomos dar uma volta por aí. Fui mostrar meu quarto e minha bicicleta para ele, que se encantou com o espaço adicional e com a tranquilidade do "chalé", pelo mesmo preço que ele vinha pagando lá na Savana, chegando a pensar em me substituir como inquilino, já que eu desocuparia o quarto no dia seguinte. Dali fomos dar uma volta, e eu resolvi comer um pouquinho, que é bom recarregar a energia em véspera de pedal. Comi duas rapadurinhas cobertas de chocolate, em um boteco, acompanhadas de uma coca-cola de 200mL em embalagem retornável, que custa apenas 50 centavos, e que é coisa daqui, ou novidade, pois no RS nunca tinha visto nada assim. Parece um bom negócio, mas se formos pensar, convertendo em uma de dois litros, ficaria custando cinco reais. É, esse caldo ainda vai conquistar o mundo! Depois de passarmos em frente à praça e vermos uma morena escultural saindo de um boteco cafifento, acompanhada é claro, resolvemos ir dormir logo. Era em torno de dez horas quando eu peguei no sono, e o despertador estava programado para 5:30 da manhã.

Olha, galera, a terça-feira, quando atravessei o chapadão da babilônia, foi o dia mais variado e divertido da pedalada até agora, provavelmente, mas há tanto a contar, e eu já estou tão cansado de escrever, que vou ter que deixar para uma ocasião futura. Me aguardem, não me deixem só, minha gente! Eu voltarei!!

Wednesday, January 24, 2007

Dia 51 - Passos, MG - 3.120km (0)

E aí, Galera Fiquei uma semana longe de computadores, por ter tomado um fartão em Itaúna, onde eu ia à LAN diariamente, e por ter passado pela Serra da Canastra, uma região onde não tem internet (e um monte de outras coisas, também) e onde o ciclista fica bem cansado. Me surpreendi com a quantidade de pedidos emocionados para que eu postasse mais relatos, pedidos feitos por gente que eu nem conhecia, chegaram a citar O Pequeno Príncipe, de Exupéry, para me convencer de que agora não tenho mais o direito de deixar meus leitores a ver navios. Portanto, vou aproveitar o dia de descanso (estou cansado, e me deu uma assadura no saco que detalharei mais adiante) para escrever, e muito, e com detalhes, que afinal é, imagino, a melhor forma de retribuir o apoio e o interesse de todos vocês nessa minha viagem. Para isso, já almocei dois pratinhos de lasanha com ensopado de peixe e bife à parmegiana (com palmito), e estou agora comendo balinhas sete-belo e escutando rock progressivo sinfônico no streaming do site http://www.progarchives.com/, que recomendo extremamente aos amantes da boa música.

O dia seguinte à trilha, segunda-feira, foi um dia de descanso, conforme combinado entre eu e o Sérgio, que se dispôs a me acompanhar em outra trilha na terça-feira. Isso significa que acordei apenas a tempo de tomar o café da manhã do hotel, voltar rapidamente para assistir o Bob Esponja, praticamente a única atração decente do programinha palha da Xuxa (pobres crianças de hoje). Saí já perto da hora do almoço, de bicicleta, com a preguiça típica do dia em que se pode fazer qualquer coisa e não se tem nada para fazer. O tempo, como sempre, continuava nublado e mormacento. Queria comer algo mais caprichado, e saí procurando algum restaurante de comida mineira, que a cidade tem aos montes, mas são todos difíceis de achar. Após desistir de achar o "Panela Mineira", cuja placa já havia visto algumas vezes durante os pedais de reconhecimento na cidade, mas não lembrava onde havia sido, acabei indo parar no D'Lécia, que infelizmente só tinha self-service por quilo, o que não costuma ser boa idéia para ciclistas, e para mim definitivamente nunca é. A comida era boa, havendo quiabo, torresmo, carne, feijão e saladinhas. Imediatamente após, fui à América Latina, onde comprei um extensor bem longo que deveria acabar com o problema de sacolejamento dos alforjes. Os pobrezinhos já estão com os ganchinhos de plástico que os prendem ao bagageiro todos esgarçados, e concluí que infelizmente o que realmente funciona não é um design "clean" e soluções malandras de fixação, e sim o bom e velho extensor de R$ 1,50, que a tudo abraça, aperta, firma e sustenta, indiscriminadamente, e independente de cor, textura, peso ou preço. De volta ao hotel, aproveitei para pôr em dia tarefas há muito postas de lado, como cortar as unhas dos pés que já ameaçavam a integridade das meias, e aparar os fios do bigode, que para mastigar pêlos grossos já bastam os que vêm no torresmo. Para isso, utilizei minha fiel ferramenta, companheira de anos: a tesourinha do canivete do extinto Suisscau, uma cópia de miniatura de canivete Victorinox, que uso para recortar os remendos Vipal (uso aqueles remendos em rolo, não sei por que acho melhor que os estrelinhas).Após essas amenidades, me senti um tanto solitário, e resolvi que sairia logo da cidade. Como disse, andar com a âncora SOBRE o bagageiro, ao invés de deixá-la no hotel ou na casa de alguém, é algo que vicia (não sei como vai ser jogá-la de volta em minha própria casa!), e assim lá fui eu até a bici, parafusar bagageiro, reposicionar o farol, ajeitar o suporte da bolsa de guidão, dar uma pré-ajeitada nos alforjes. Nesse ínterim, o interfone do quarto tocou, e fui avisado de que o Caneschi estava na portaria me aguardando, conforme o combinado, para irmos tomar um açaí na sorveteria. Ele estava dessa vez, não com a Caravan ou com a Kawasaki, mas com um jipe JPX Montez (taí um cara que gosta de veículos bons), e lá fomos nós, não sem antes passar pelo Giscard, um tatuador que já deixou no próprio Caneschi, tatuadas, a imagem da asa-delta dele, a imagem da falecida cadela dele, a Mafalda (que aliás estampa também a traseira dos caminhões da transportadora dele, que não por acaso também se chama Mafalda), além da clássica e versátil expressão "Amor eterno", no lado esquerdo do peito. O cara lá é bom, vi o álbum dele, e ao comentar que só tatuaria algo relacionado com bicicleta, ele mostrou uma tatuagem que havia feito (mais tarde descobri que o tatuado era o irmão mais novo da Gilvana, também ciclista, é claro): um talho do lado esquerdo da perna, por onde penetrava um pedivela inteiro - e não só a coroa grande!Nos despedimos logo, e fomos, a pedido meu, a uma lanchonete, onde comi o xis filé especial, recomendação do Giscard, que me serviu como janta. Imediatamente após, fomos à sorveteria tomar o tal açaí, outro novo vício, tanto meu quanto do Caneschi. Ficamos ali de trololó, e em seguida veio nos acompanhar a Gilvana, que preferiu tomar um sorvete de maracujá. Papo vai, papo vem, começou a dar frio, a Gilvana tinha de ir embora em seu possante Chevette 74 (mas com classe!), então fui conduzido de volta ao hotel, assisti um pouco de TV e nanei.

O dia seguinte, terça, era o dia de fazer a trilha do visual, com o Sérgio, programa que seria feito à tarde, exceto se as condições do tempo permitissem voar de trike. Na quarta, então, ficaria "de sobreaviso" para voar, e independente de ser ou não bem sucedido, quinta-feira seria o dia de partir de Itaúna. Provoque a sede de levantar âncora até não aguentar mais, hehe.Aproveitei a parte da manhã para ir a uma outra LAN, onde era permitido instalar programas no computador, e instalei o GPS Trackmaker, a partir do qual editei alguns arquivos que achei na internet com trilhas, estradas e pontos úteis na Serra da Canastra, meu próximo destino turístico. Passei esses dados para o GPS, imprimi um mapa esquemático, e fui almoçar. Seguindo recomendação de muita gente, fui ao Maria Formiga, restaurante próximo ao hotel, e comi quiabo, lasanha, carne assada, salada, torresmo... Voltei ao hotel para tirar uma sesta, e depois das três e meia da tarde me dirigi à loja, onde já me aguardava o Sérgio. Saímos pedalando pela cidade, pra variar em um ritmo meio forte, que aquela galera lá não poupa pedal. Mesmo tendo descansado um tanto, não estava me sentindo tão bem quanto no domingo, até porque já havia colocado de volta o bagageiro e o suporte da bolsa de guidão. Logo já estávamos no paralelepípedo, depois na estrada de chão, e começamos a pegar mata-burros, porteiras e trechos de pasto com gado, tendo de tomar cuidado para não escorregar nas bordas argilosas das valetas erodidas. Em alguns pontos, era necessário descer da bici para empurrar, devido à inclinação e à quantidade de pedras que, mesmo não sendo grandes, provocavam desequilíbrio. E a trilha foi indo assim, sempre subindo, suave e constantemente, na maior parte do tempo por entre trilhas de gado. Chegamos a comentar que era bom que não estivesse chovendo ou molhado o chão, pois se assim fosse os escorregões e o ski-bunda seriam inevitáveis. Após outra porteira, a trilha ficou mais fechada, com mato dos dois lados, e o caminho tinha apenas um palmo de largura. Havia uma árvore caída para evitar a passagem de motoqueiros, mas já havia também um contorno mal definido em meio à vegetação cheia de galhos e cipozinhos, ao lado da passagem bloqueada. Depois de mais alguns poucos metros, chegamos ao local que dá nome à trilha: uma laje de pedra, comum nesse tipo de morro, que formava uma plataforma que serve como mirante natural, em direção a oeste, e de onde se podia avistar, da esquerda para a direita, as cidades de Carmo do Cajuru, Divinópolis e... uma grossa nuvem de chuva, acompanhada da inevitável cortina branca de chuva, que aparentemente se movia em nossa direção. Tiramos algumas fotos e decidimos nos mandar logo, mas voltamos somente até um pouco depois do desvio pelo mato, quando fomos atingidos pela chuva, inicialmente fraca, engrossando logo depois. Mesmo já tendo sido confirmado vezes sem conta que se esconder da chuva embaixo de árvores não resolve o problema, foi exatamente o que fizemos, e causou certa surpresa o fato de que estava funcionando! É claro, funcionou por cinco minutos, e a chuva não havia diminuído significativamente, de modo que optamos por seguir na chuva mesmo, com todas as conseqüências escorregadias que isso teria. O Sérgio não parava de falar que "a trilha devia estar escorregando igual um quiabo", com seu característico sotaque mineiro. Mesmo assim, o astral estava em alta, e logo descobrimos que o medo do ski-bunda não era de todo justificado, pois a trilha molhada estava segurando bem (vale lembrar: se algum mineiro disser que o carro agarrou na lama, isso significa que ele atolou, ou seja, a lama "agarrou" o carro). Isso significou que descemos empolgadamente, no limite do que a visibilidade precária, as bordas das pedras e o tamanho das valetas permitiam. Tomamos ainda uma outra trilha para voltar, usada por motoqueiros, e vimos mais uma vez por quê os proprietários de roças derrubam árvores para impedir o acesso dos motoqueiros (chamados por alguns de "mocotreiros", sarcasticamente): valetas enormes, várias trilhas paralelas e todas escalavradas e cheias de erosão. Escolhemos a menos pior e fomos, e confesso que me surpreendi positivamente com o desempenho de minha bicicleta, especialmente dos pneus, e de toda a tralha pendurada que interferiu pouco em sua manobrabilidade off-road. Saímos da trilha com a carcaça suja, mas com a alma lavada, como sempre, e seguimos de volta à cidade. Deu para perceber que o Sérgio sentiria falta do novo amigo trilhesco (eu), pois falava insistentemente que havia por lá ainda trilhas muuuuuito melhores, que o ideal seria que eu passasse mais tempo lá, ou então que voltasse logo, que fosse de avião para poder andar mais por lá, que ele gostaria de um dia ir ao Rio Grande do Sul para pedalar por lá também, e essas coisas. Disse a ele que era difícil imaginar um retorno a Itaúna tão breve, por questões de tempo, e disse a ele também que não se preocupasse, pois ele ainda era jovem, e quando a gente envelhece os conceitos de distância, proximidade, custo e "muito tempo" se relativizam bastante. Mesmo assim, também lamentei não poder ficar mais tempo para fazer mais trilhas por lá.
De volta ao centro da cidade, já sem chuva, me despedi do Sérgio, após lavar a bicicleta no posto de gasolina (ele preferiu não lavar) e achar uma lanchonete para lanchar. Comi uma coxinha e dois sucos de pêssego em lata, e fui para o hotel, onde tomei banho. Na hora da janta, resolvi inovar, indo ao Bar do Peixe, perto do hotel, e comi um PF que veio muito fartamente servido, embora meio caro. Tomei também dois enormes sucos de manga, feitos com polpa, pois geralmente depois do pedal a sede acaba sendo maior que a fome. E esse foi meu último dia de trilha em Itaúna.

Quarta-feira, o plano era ratear de manhã, e tentar voar à tarde, sem muita esperança, pois além do tempo bom, era necessário que o Caneschi estivesse com tempo livre, o que nem sempre era possível. Aproveitei a recém descoberta LAN para mandar todas as novas fotos para o álbum, cujo link nesta página não funciona. O link correto é este: www.flickr.com/photos/heltonbiker , clica aí! O site é bom porque disponibiliza um programinha, o Uploader, que manda as fotos automaticamente, facilitando muito a vida. Feito isso, fui almoçar no Sandoval, por ser a opção mais próxima e econômica. Após o almoço, liguei para o Caneschi, e infelizmente fiquei sabendo que não seria dessa vez que iria descobrir por quê os passaros voam... Paciência, valeu a intenção, e ao menos o açaí de cada noite era algo com o qual eu ainda poderia contar. Fui então ao hotel, e fiquei lá dando um tempo, até que resolvi sair e dar uma volta de bici pela cidade. Escolhi a prainha, onde procurei algum lugar para fazer um lanche. Depois de ir e voltar uma vez e meia, parei em um bar lá que era o único aberto. Vi com espanto que as lojas por aqui fecham muito cedo, e os bares não ficam abertos o dia todo, abrindo depois que as lojas fecham, o que dificulda bastante a logística de quem não está acostumado com isso. O bar onde parei era dos poucos que estava aberto àquela hora, e pedi um prato típico por aqui: bola de carne, que vem a ser a conhecida almôndega, acompanhada de molho, farinha e catchup. Enquanto comia, fiquei apreciando o movimento de beldades que passava esporadicamente pela calçada e pelo calçadão formado pelo canteiro central da avenida (aqui também não é calçada, é passeio). Já semi-alimentado (ô, saco sem fundo!) resolvi fazer um pré-aquecimento para o dia seguinte, pegando um trecho de estrada na direção de Divinópolis. Antes, passei no posto de gasolina para dar uma calibrada nos pneus, e lá fui eu. Vale lembrar que eu estava sem luva, sem sapatilha, sem capacete, e como o sol estava de frente e já meio baixo, tirei também a camisa, para bronzear um pouco o peito branquelo. A estrada logo que sai de Itaúna está meio ruim para ciclista, com muito movimento de caminhões e carros, pouco acostamento e bastante capim alto crescendo para dentro da pista, diminuindo a visibilidade nas curvas. Há também muitas subidas e descidas por ali. Determinei que pedalaria por meia hora depois daria volta, mas preferi encurtar o passeio antes disso, o que se mostrou uma boa idéia, pois logo depois percebi que a razão do bamboleio que vinha sentindo não era a pedalada quadrada e nem ondulações do asfalto: minha mania de andar sem a tampinha do ventil fez com que sujeira ficasse acumulada na válvula, e após a calibrada no posto a válvula ficou com um vazamento microscópico, porém suficiente para me impedir de seguir pedalando. Como eu estava com meu traje "casual", além de não ter sapatilha, luva e capacete, obviamente não tinha bomba também. Obviamente, isso significou ter que empurrar a bici por mais de cinco quilômetros até a entrada da cidade. Obviamente, isso me deixou com raiva de mim mesmo, mas é bom para aprender que não basta ter pneus à prova de furos se a gente é ratão. De volta à cidade, já suado, cansado e com fome de novo, fui ao posto, calibrei decentemente o pneu, testando a válvula com um cuspe, e vendo que essa não apresentava vazamento dessa vez. Satisfeito com o resultado, e ainda com tempo sobrando, fui à quadra sintética, aquela onde houve a partida de futebol feminino na semana anterior, e comi mais um belo prato de espaguete à bolonhesa com queijo ralado, milho e maionese, um prato bem substancial pela bagatela de R$ 2,80 (sim, dois e oitenta!). Imediatamente após devorar o prato, fui até a sorveteria onde tem o açaí, e àquela hora sim, a prainha já estava bastante movimentada, com muitas meninas bonitas (devia haver homens também, mas não reparei) circulando para lá e para cá com suas roupas justinhas apropriadas à atividade física. A sorveteria estava igualmente cheia, e tive de pegar uma mesa mais afastada, na rua. Pedi o açaí de 500ml com rodelas de banana e castanha moída, e fiquei ali, comendo, lentamente para não doer a goela por causa do frio. Ao terminar, satisfeito, paguei no caixa e subi na bicicleta para ir ao hotel, quando ouço alguém chamar meu nome. Olho para trás e está o Caneschi, sorridente como sempre, descendo de seu jipe, acompanhado de uma amiga, para comer sua dose diária de açaí. Desci da bici e voltei à mesa, para bater um papo. Logo em seguida, chegou a Gil, e ficamos ali conversando. Ver o Caneschi comendo a deliciosa massa púrpura me levou a pedir mais uma dose, dessa vez de 300ml (me arrependi depois, quando essa acabou, devia ter pedido de 500 de novo... sério!). Não muito depois, chegou o Sérigio, que havia dado sua corrida vespertina já. Ficamos ali conversando, e foi quando aproveitei para fazer algumas fotos da turma reunida. Como no dia anterior, logo todos tiveram de seguir seus rumos, e fui pedalando ao hotel, tomei banho, assisti um pouco de TV, e nanei, que no dia seguinte haveria uma âncora no bagageiro para carregar.

Quinta-feira o despertador tocou cedo, mas a preguiça me levou a não sair tão cedo assim. O dia estava bonito, com bastante sol. Tomei o café e saí, sacolejando um pouco nos trilhos do trem e nas irregularidades do asfalto, embora já notando o efeito decisivo do extensor em volta dos alforjes, e desviando dos apressados e nada solidários motoristas, até ganhar a estrada novamente, indignado por ter achado finalmente o Panela Mineira, na saída da cidade, agora tarde demais (ou cedo demais para almoçar, hehe). Àquela hora, felizmente, o movimento de caminhões era bem menor que na véspera, e o pneu não havia murchado mais, de modo que o trauma foi vencido (temporariamente, mal sabia eu). Logo na saída, tem uma ponte por cima das comportas de uma pequena represa, algo bem interessante, ainda mais devido ao forte barulho de água devido à cheia do rio. A estrada depois daquele trecho que eu já conhecia melhorava bastante, ficando naquele longo sobe e desce com várias baixadas em reta, e acostamento suficiente para andar com toda a segurança. Antes de Divinópolis, parei para tomar dois sucos de pêssego com coxinha, que o dia estava quente e a hidratação é importante, assim como a alimentação nada light. Levei uns dez quilômetros para cruzar o perímetro urbano de Divinópolis, que parece ser uma cidade bem grande. Logo depois de passar por ali, onde fui cumprimentado rapidamente por um ciclista que me alcançara na estrada, fui cumprimentado por OUTRO ciclista que também me alcançara na estrada (assim é fácil, eu todo pesadão...). Ele se chamava Reginaldo, era mais velho que eu, e estava em uma Specialized bem legalzinha. Disse que dava aula de educação física em Itaúna e em Formiga, mas não conhecia nenhuma Gilvana (e aí, Gilvana, tem algum professor Reginaldo?). Ele me deu algumas dicas sobre como é a cidade de Formiga, meu destino do dia, além de dar algumas sugestões sobre as opções de almoço no caminho. Logo ele deu meia-volta, nos despedimos fraternalmente, e eu fui indo, esperando a fome e a canseira horrível se abaterem sobre minha carcaça. Isso aconteceu nas proximidades do Café do Motorista, uma das recomendações do Reginaldo, e foi ali que parei.
O restaurante servia prato feito, e eu pedi o meu com bife de porco, sentando ao ar livre. Para acompanhar, pedi um guaraná 600ml, mas me serviram um de 500ml, pois agora essa era a nova medida que eles estavam mandando. Perguntei se o preço havia baixado, o garçom disse que não, e comecei a considerar muito seriamente que devo diminuir o consumo de refrigerante, não por achar que ele seja ruim, mas para não mais compactuar com essa forma abusiva e mercantilista de obter lucro a partir da sede alheia. Isso não me impediu, entretanto, de pedir OUTRA garrafa de guaraná 500ml. Realmente, a sede transtorna as pessoas. Não consegui comer todo o prato, até porque há limite para o tamanho da voracidade de qualquer pessoa, e eu havia comido há não muito tempo. Remei e empurrei o que pude, e depois fiquei com a cabeça encostada na grade, parecendo um náufrago agarrado a uma tábua no meio do mar com sol a pino (eu estava na sombra, porém), com cara de cavalo moribundo. Ao todo, foram duas horas de parada, o dobro do meu intervalo normal de almoço em viagem, mas eu já aprendi faz tempo que temos que ouvir o corpo, e se ele quer ficar parado, fica-se parado, e fim de papo.
É claro que o descanso funcionou, e então de repente me levantei, paguei, escovei os dentes, enchi as garrafas de água e me mandei.
O trecho de estrada que peguei depois disso eu não recordo muito como era, só lembro que tinha sobe e desce constante, sol, pouco movimento de veículos, acostamento bom, e muitas vezes eu desci da bicicleta para empurrar, descansando as pernas e a bunda dormente. Em determinado momento, encostei a bicicleta em um barranco e fiquei sentado à sombra, no acostamento, olhando o movimento. Os motoristas que me viram ali devem ter pensado que eu era louco ou estava passando mal, mas na verdade eu estava muito satisfeito com minha condição marginal, digo, à margem da estrada, na sombra. Quando volto para pegar a bici, vejo consternado que o pneu dianteiro está vazio. Tento encher depois de desembrulhar a bolsa de guidão e pegar a bomba, mas vejo que o furo é ao redor da válvula, fruto garantido dos quilômetros em que empurrei a bici com o pneu vazio, mastigando a câmara. Retiro a roda dianteira com a bicicleta atirada de lado no capim alto, acho o furo ao lado da válvula, numa zona passível de remendo, e prefiro remendar o furo a trocar por uma câmara nova. A tarefa toda não durou muito, e foi bom me envolver em outra atividade, para descansar o corpo de pedalar apenas. Monto tudo, parafuso, guardo, amarro, procuro no chão pra ver se não ficou nada, e me mando, sentindo o pneu firmemente cheio sob minhas mãos, embora não tão cheio quanto antes, por precaução, mas com aquela sensação de que a invulnerabilidade foi definitivamente abolida, e de que dali pra frente a série frustrante de furos me seguiria até o fim da viagem, coisa que obviamente não tinha motivo para acontecer. Não muito depois, tive de parar novamente, por sede, em um povoado à beira da estrada, onde tomei duas garrafas de coca-cola (com minúsculas, em protesto), novamente assumindo a expressão de cavalo moribundo ao olhar para o vazio enquanto a química ianque se infiltrava em minha corrente sangüínea, para meu alívio.
Dali a Formiga não demorou mais muito, e se não me falha a memória cheguei lá abaixo de chuvisco. Parei em um posto antes da entrada da cidade, onde me recomendaram um hotel que fica perto da Faculdade. Desci pela BR, entrei à esquerda para a cidade, subindo uma comprida lomba. Lá de cima, vi a rua onde fica o hotel indicado, mas achei muito afastada de tudo, e preferi seguir até o centro, descendo pela avenida até a praça central, cruzando uma linha de trem (lá o trem também passa constantemente, como em Itaúna, e se bobear é o mesmo trem). Me indicaram alguns hotéis, e acabei escolhendo ao acaso, ficando no Hotel Bandeirante. Foi uma má escolha. O preço até que era bom para um quarto no térreo (sem escadas para carregar a bici) com banheiro e TV, pena que o quarto era pequeno e o banheiro era meio precário, pois o chuveiro só funcionava no inverno. Após o banho, atravessei a rua e jantei numa lanchonete em frente ao hotel. Ao olhar o cardápio, meus olhos pousaram logo no xis tudo, rapidamente indo para o xis tudo especial, e finalmente se acomodando no xis tudo especial super (sério, era esse o nome!), que foi o que pedi, acompanhado de um suco de polpa de manga. Quando veio o tal xis, me espantei com as proporções dele, pois era praticamente esférico, as duas partes do pequeno pão sendo eclipsadas pelo hamburger, presunto, bacon, calabresa, queijo, ovo, abacaxi (!) catupiry e outras frescuras do tipo, que faziam o avantajado sanduíche quase não caber no envelope plástico. Sem hesitar, pedi um prato e talheres, e mandei ver, pedindo mais um suco, dessa vez de morango (suco em lata e em polpa, de morango, é tri; em lata, nunca peça laranja e em polpa, nunca peça pêssego, pois não ficam bons depois do processamento). Fui ao hotel e então descobri por que não foi uma boa escolha. Na portaria, praticamente tive de pedir favor para passar, pois se aglomerava uma jaguarada, falando alto, e com cara de que estavam planejando algum assalto a banco. Da sala de TV provinham mais alguns decibéis de ladainha de botequeiro. Assisti um pouco de TV no quarto, mas quando tentei dormir o som da TV do vizinho (cuja janela dava para o corredor, assim como a minha, e portanto as duas ficavam de frente uma para a outra, e a dele estava aberta), juntamente com a quase interminável conversa de pessoas que iam dum lado pro outro do corredor e ficavam abrindo e fechando portas (dá até pra imaginar que se eu abrisse a porta subitamente veria todos fazendo barulho de propósito à minha volta só para não me deixar dormir...). Quando a zoeira do entra e sai terminou, aí foi a vez da TV do vizinho, com som de explosões, helicópteros, metralhadoras e coisas do tipo. Quando escutei (como não escutaria?) coisas como "no problemo" e "hasta la vista, baby", me dei conta de que se tratava do Exterminador do Futuro 2, e liguei então a TV para ver o filme, de que gosto, já que dormir não conseguiria mesmo. Assisti um pedaço do filme, com mais algum tiroteio (adoro a parte que ele chuta a mesa e aparece no alto do prédio com a metralhadora giratória, detonando os carros da polícia), mas já havia assistido o filme há pouco tempo, então me conformei e tentei dormir apesar de tudo, pois ouvia também os roncos do vizinho do lado e percebi que ele demoraria a abaixar o volume da TV. Em algum momento, peguei no sono.

Acordei na sexta com o despertador, que havia ficado carregando ao lado do ventilador (outra fonte de ruído branco que abafou um pouco a zoeira da TV do vizinho. O café até que era bom, com pão de queijo e tudo, e mais uma vez se confirmou minha recém-criada teoria de que os elementos que perturbam durante a noite nunca aparecem para tomar o café da manhã. Saí pela cidade para ir à LAN pegar o contato do Rodrigo Telles, que em breve me receberia em Franca, já que provavelmente na Serra da Canastra não deve haver muitos pontos de internet. Também aproveitei para comprar dois pares de pilhas, outro artigo precioso para o ciclista gepeéssico e fotográfico que percorre locais ermos e fotogênicos. Voltei ao quarto do hotel, arrumei tudo, e dei uma completada na calibragem do pneu. Ao empurrar a bicicleta para fora do quarto, percebi que ele estava murchando, e não era na válvula (teste do cuspe). Resolvi acabar com aquela palhaçada, paguei rapidamente o hotel, saí, e fui à garagem, onde substituí a câmara por uma nova, além de instalar uma fita de aro nova que trazia comigo (ahá!), e deixar a tampinha da válvula NA válvula... Na saída para a cidade, passei em uma loja e comprei outra câmara Kenda, a única marca que uso, por ser barata e boa. Cortei um pouco a série de perguntas que começaram a me fazer na loja (tenho que melhorar meu humor para conversar com as pessoas, mesmo quando atrasado e com coisas a resolver, isso pode estar prejudicando minha imagem como cicloturista...) e me mandei. Os primeiros trechos da estrada apresentam muitas placas falando da represa de Furnas, do parque Furnastur, pois ali está a represa de Furnas, uma das maiores do país que eu saiba, e a região é conhecida como o Mar de Minas, afinal estamos muuuuito longe do mar. Pelo que deu para entender, antes de ser um piscinão de Ramos, ou apesar disso, lá é um lugar que deve ter dúzias de condomínios, marinas, rampas para barcos e coisas desse tipo. Coisa chique. Com toda a função de tarefas e atrasos, logo senti fome, e parei para almoçar no Estância Gaúcha, onde a comida era mineira, e pude comer coisas leves, como feijão tropeiro, torresmo, banana à milanesa, dobradinha, costela na panela, massa e um suco de laranja. Depois de pagar, aproveitei uma sombra em um canto do enorme estacionamento para tirar uma sesta, me deitando sob as árvores, tentando encaixar os ossos nas concavidades mais confortáveis do piso de paralelepípedo, esperando a comida baixar e o ânimo subir.
O dia estava de fato bastante quente, e eu ia indo, pedalando, vendo se aproximar uma serra bem considerável, embora não pudesse ser a serra da Canastra, e o sobe e desce era constante, pior ainda que a estrada era reta, então ao chegar no topo de uma descida dava para ver lááá longe a enorme e contínua subida. Isso se repetiu algumas vezes, muitas vezes eu empurrei a bici, e a maior dessas baixadas era na cidade de Pimenta, última cidade antes de Piumhi, às margens do lago de uma pequena represa. Ali, parei para tomar um guaraná e encher as garrafas de água, estando com bastante calor. Faltavam ainda uns 15km para o fim do trecho do dia, e quando me senti melhor fui adiante, fazendo força mas andando devagar, acho que pelo calor e pelo cansaço.
Nessa vidinha de sobe e desce, em um certo momento, depois de estar já contornando a serra que estava agora bem próxima (confesso que fiquei com medo ao ver que a estrada seguia diretamente para ela, mas na última hora ela fez uma curva), senti um cheiro característico de uva madura, mas lembrei que ali não tem uva, e imediatamente lembrei que sentira o mesmo cheiro ao passar por uma mangueira alguns dias atrás. Era uma subida, e eu imediatamente freei e olhei em volta, para achar satisfeito uma enorme mangueira, com várias mangas amassadas ao pé da árvore, e mais mangas ainda penduradas nos galhos, a maioria verdes.
Fui até ali, encostei a bicicleta no rodapé da estrada (ou algo que serve como rodapé, enfim), e comecei a busca. No chão, só mangas muito passadas e já roídas de bichos, e na árvore, à primeira vista, só mangas verdes. O trecho da estrada era uma forte lomba com boa visibilidade acima e abaixo, então eu periodicamente tinha de olhar para os dois lados, antes de começar a percorrer a periferia da árvore, procurando possíveis vítimas, e havia algumas. Desenvolvi a óbvia técnica de pegar as mangas caídas que não estivessem muito moles, e atirá-las na árvore, para derrubar as mangas potencialmente maduras (e, sempre, mais algumas que não tinham nada a ver com a história, mas que acabavam virando lanche, ou munição). Rapidamente desisti de manter as mãos limpas, e descobri que é bem fácil descascar a manga a partir da ponta, usando os dentes, como se ela fosse uma banana. Fiapos no dente, ficaram vários. (referência musical: joelho de porco - mardito fiapo de manga "Debaixo daquela mangueira..."). Os motoristas passavam, caminhões voavam, muitas vezes aproveitando a reta e a descida para ultrapassarem-se uns aos outros mutuamente, e eu ali, feliz por estar em um veículo que, apesar de cansativo, me permitia enxergar mangueiras e parar para comer seus frutos. Depois de saciado (não completamente, mas achando que já não valia a pena o esforço adicional), lavei as mãos usando a eficiente técnica de colocar a caramanhola, com o bico puxado, entre os joelhos, apertando com as pernas e aproveitando os pingos. Subi na bicicleta, dei tchau para a mangueira e agradeci, e segui viagem, que Piumhi estava a dez míseros quilômetros, que foram pedalados com a costumeira sofreguidão, diminuída um pouco pelo sol que já estava um pouco mais baixo. Entrei na cidade, e após pedir informação daqui e dali (alguns senhores também começavam a me fazer um monte de perguntas, e teimavam em responder minhas próprias perguntas da maneira dispersa e imprecisa que é característica do pessoal daqui), optei por ficar no hotel Caiçara, uma ótima escolha. Entrei no hotel com aquela cara de "me dá um quarto bom, logo", e fiquei num quarto simples porém espaçoso, com pia, duas camas, e espaço para três bicicletas até. A senhora que me atendeu foi atenciosa, e enquanto me ajeitava para o banho ela ficava circulando cantando e assobiando pelos corredores, que figura. Vi que na sala de TV estava uma morena daquelas que faz a fama de Minas: atirada no sofá de bruços, abraçando um dos braços do sofá, deixando uma das pernas cair quase até o chão, morena, cabelo liso, tipo uma Luisa Brunet mais jovem, mais "fortinha" e mais escura. Só deu alguns desdenhosos olhares em minha direção, enquanto eu preenchia a ficha do hotel, respondendo as perguntas da recepcionista distraidamente. Mulher que sabe que é bonita é fogo.
Fui então tomar o tal banho, que incluiu lavagem de roupas. O sol atingia a janela do banheiro, e deixei a lâmpada desligada, uma das vantagens de se tomar banho de tarde (não sei por que, mas acho que fica um clima mais legal no banheiro com luz natural). Ao sair do longo banho, pude fazer algumas fotos do pôr do sol, a partir da janela do meu próprio quarto. O céu estava bastante limpo, mas havia aquelas nuvens avermelhadas para dar um efeito. Fui à recepção, onde a morena já não estava mais, e me informei com a tia assobiadora da recepção, sobre lugar para jantar. Da sacada do hotel, onde estávamos, vi várias beldades passando, inclusive um triozinho de bicicleta, naqueles trajes típicos de fitness que caem tão bem às meninas. Acabei indo jantar no Bola Branca, um comercial com arroz, feijão, três tipos de salada, bife, batata frita, em quantidades impossíveis de comer tudo. Acompanhando, suco natural de limão. Saí muito satisfeito, e fui ao hotel fazendo um zigue-zague por entre as ruas, vendo se achava algum movimento. Entrei no Hotel com aquela conhecida sensação que provém da certeza de estar perdendo algo, de, apenas por detalhe, não saber onde fica o local secreto onde todas as gatinhas da cidade se reúnem para tomar suco natural e ficarem comentando como a vida é monótona nesta cidadezinha, e que seria muito legal se aparecesse um cicloturista gatão e cheio de novidades para contar. Como isso nunca acontece, me conformei e fui assistir novela. Para minha surpresa, a morena aquela estava lá, com sua mãe (que obviamente estava sentada em um local que ficou bloqueando minha urubuservação). Enquanto assistia a novela, podia apreciar discretamente as pernas morenas, o pé bem feitinho, o perfil de Luiza Brunet, o cabelo absolutamente escuro e liso. Alguns magrinhos magalescos passaram na rua com o som do carro a toda, tocando o pior tipo de música possível, e a morena já se requebrou todinha, enquanto mantinha os olhos fixos na televisão (safada! pensei... deve ser a locomotiva do Bonde da Maria Gasolina...). Quando começou o Globo Reporter, me desinteressei de televisão, e quando levantei para dar boa noite, a morena se levantou também, e olha, era uma senhora morena, ao menos em estatura. Durmamos, pois, lá fomos nós, cada um pro seu quarto, claro, sem trocar uma palavra, claro. Deixei as janelas abertas, e a ventilação natural da noite estrelada permitiu um sono tranqüilo.

Outro dia, sábado, acordei sem muita pressa, pois a previsão era de no máximo 70km até Vargem Bonita, já na Serra da Canastra, com possíveis trechos de estrada de chão. Fui tomar café, aproveitando para comer bastante e levar no bolso um pão com margarina e doce de goiaba. Pude ver passar, pela última vez, a bela morena, que pra variar estava com a mesma roupa da véspera, uma blusa e uma saia frisada, ambas não muito longas. Após o café, botei a roupa já quase seca, e fui ao supermercado comprar pilhas, já com a bicicleta pronta e todo fardado. Por muito, mas muito acaso, o porteiro do hotel de Formiga estava entrando no mesmo supermercado onde escolhi entrar, e ele me falou assim como quem não quer nada: "não era você que estava no hotel em Formiga? Esqueceu o carregador do telefone lá". Na hora, o mundo caiu. Puuuta merda, e agora, eu precisava do telefone para ligar para Deus e o mundo, e era um maldito Samsung que ninguém tem o carregador, e eu estava de bicicleta, já de saída lá pro quinto dos infernos, e Formiga ficava láááá atrás de um monte de subidas horríveis, e eu ia perder o dia de viagem, morrer pedalando, e um carregador novo, se eu conseguisse achar, seria muito caro, certamente, que merda, por que eu sou tão trouxa, como é que eu esqueço um troço desse, e se fosse o GPS, ou a máquina, só não esqueço a cabeça porque tá presa, e assim prossegui a torrente de raciocínios que envolviam auto-culpa, auto-raiva e alta desorientação. Peguei o telefone do hotel e já ia indo para o orelhão, quando resolvi abrir mão da economia e pelo menos tentar descobrir o preço de um carregador de telefone. Depois de alguma pesquisa, onde novamente me desvencilhei de maneira bastante pouco polida das perguntas que os transeuntes faziam sobre de onde eu vinha, pra onde eu ia, por que meu cubo era tão grande, se minha bicicleta era de corrida, se eu tava dando uma pedalada por aí, etc. Uma pena, muito simpático o povo lá, mas já deu pra ver que o tipo de gente que pára pra conversar são os mais jaguara possíveis. Entrei numa loja lá de acessórios, e ela não só tinha o tal carregador (genérico, é claro, tomara que não queime meu telefone), como este custava míseros R$ 15,00, mais barato do que passagem de ônibus de ida e volta a Formiga. Surpreso com a facilidade com que meu drama havia se resolvido em quinze minutos, comprei mais um par de pilhas alcalinas, e tomei meu rumo para Vargem Bonita, já passadas onze da manhã.
O asfalto para lá é novo (o trecho de chão felizmente não existe mais), bom, e o trânsito é mínimo. Ao longo do inicialmente suave sobe e desce da estrada, pode-se ver no horizonte o degrau formado pela borda sudoeste da Serra da Canastra, que ocupa boa parte do horizonte, formando uma barra verde-escura empalidecida pela distância. As margens da estrada estão repletas de plantações, em sua maioria cafezais, e a povoação é mínima. Em um trevo lá adiante, parei para tomar dois sucos em lata e pedir informações, e ao saber que para São Roque de Minas (na verdade, meu destino inicial) eu teria de andar mais longe e subir mais lombas, preferi seguir para Vargem mesmo, que aliás ficava mais próxima da cachoeira da Casca D'Anta e da estrada de terra por onde eu continuaria viagem. Não muito depois desse trevo, passei por uma ponte em reforma (talvez devido às cheias deste ano), que ficava no fundo de um vale. Ali começava um trecho com subidas e descidas longas, que me cansaram bastante. Ali também fiquei pasmo, pois logo após a ponte, na subida, achei várias latas de refrigerante jogadas no acostamento, e estavam inteirinhas, limpinhas, era coisa recente de gente muito porca, provavelmente enquanto esperavam a liberação da pista durante alguma obra na ponte. Mesmo lá no meio de outras estradas onde seria inimaginável alguém jogar lixo na estrada, vi muito disso, latinha, saco de salgadinho (geralmente é comida que não presta, ainda por cima). Uma pena, realmente. Não juntei tudo porque estava de bicicleta, e infelizmente ficava pouco prático para mim consertar o erro alheio, naquele momento.
A cada quilômetro que passava, a estrada ficava mais sádica, e depois de passar em um povoado em cuja entrada havia duas placas, cada uma delas dizendo "bem-vindo a tal lugar", e cada placa dava um lugar diferente, ambos diferentes ainda do nome que aparecia no GPS, peguei uma subida de matar, onde empurrei a bicicleta em uma velocidade sub-lesma-tetraplégica, com o rendimento já muito comprometido pela falta de almoço, deviam ser mais de três da tarde já. E assim fui indo, a uns dez quilômetros da Vargem tomei uma chuvarada refrescante e ensopante, fui moendo os quilômetros um a um, com a serra já não tão longe sendo rapidamente engolida pela parede de chuva que passava. O último quilômetro e meio é uma descida animal, semelhante à que leva a Urubici para quem vem por São Joaquim, onde mesmo com piso molhado atingi uns 75km/h. Ao entrar na cidade, as placas: "ponte sobre o Rio São Francisco" e "bem-vindo a Vargem Bonita, a primeira cidade banhada pelo Rio São Francisco". Legal.
Subi pela outra margem, uma rua íngreme, no topo da qual havia um mercado com um monte de gente na frente. Parei para pedir informação, e o tamanho minúsculo da cidade diminuiu minha rabujice, levando-me a responder longamente de onde eu vinha, pra onde eu ia, etc, etc. Me indicaram algumas pousadas, e também a loja Baú de Lendas, de artesanato, onde eu poderia encontar panfletos e folders sobre o parque. Fui até lá, vi algumas fotos, pedi algumas informações ao rapaz, e como sempre os pontos indicados eram os mais manjados, as fotos que eu mais gostei eram de cachoeiras difíceis de achar, de acesso proibido, ou longe pra burro. Vi que a coisa não ia ser fácil por lá. Um cara que estava por lá, ao confirmar que eu era cicloturista, me perguntou se eu não conhecia o Vander, assim como se o Vander morasse no mesmo prédio que eu. Disse que não conhecia, aí ele explicou que era um chileno que veio até São Paulo, que ele tinha um site, recomendou que eu desse uma olhada... É uma pena que os cicloturistas não formem uma comunidade TÃO coesa, ao menos ainda não, mas é curioso ver como os ciclistas ou aqueles que têm algum conhecimento de cicloturismo acham que sim. Me despedi, depois de responder algumas perguntas inevitáveis sobre a bicicleta, o mais gentilmente que pude, e fui procurar as tais pousadas.
Fui direto à pousada Savana, numa esquina da praça. Casa minúscula, me atendeu uma senhora baixinha e gordinha. Estavam lá dentro também uma moça com uma criança pequena no colo. Ela mostrou o quarto, disse que era quinze, ops, vinte, e eu vi que ali eu não ia ser feliz, disse que ia ver, ia pensar, e me mandei. Desci a rua pela mesma calçada, e chamei na janela da Pousada São Francisco, onde ninguém atendeu. Uma moça baixinha passava pela rua, e eu perguntei onde andava o pessoal da pousada. Ela disse "a essa hora não tem ninguém aí não" "e tu sabe quando volta, ou como posso fazer pra achar?" "sei não", e ficou me olhando, sorrindo, indiferente à minha óbvia desorientação e necessidade de ser ajudado. Ultimamente em Minas tenho notado isso, tu pergunta alguma coisa, eles respondem e deu, não complementam, não sugerem, nada. Deve ser resultado das origens portuguesas, dizem que em Portugal é pior. Fui ao hotel Aconchego Canastra, muito bonito, fui bem atendido, só que a diária era quarenta reais, muito para mim que pretendia dormir três noites e estava com o capital contadinho, numa cidade sem Banco do Brasil. Quando estava já puto da vida, tendo desabafado um pouco com o cara do hotel, que me advertiu que por aqui o atendimento era assim meio simples ("simples não, é precário! Simples é outra coisa", retruquei prontamente, mas o cara do hotel ao menos já tinha visto que eu estava cansado e achou meio engraçado), resolvi fazer um lanche na padaria, pois não havia bar, nem janta, nem restaurante, nem nada por ali, onde tudo fechava cedo e as pessoas se alimentavam da brisa do anoitecer. Comi tremulamente uma coxinha e um litro inteiro de iogurte. Fui atendido por uma moça magrinha, com uma expressão de cachorro com fome, mas até meio bonita, com olhos grandes com cor de água de rio depois da chuva (ou seja, castanho claro, mas um castanho diferente dos outros, um tom muito forte e difícil de ver por aí). Já alimentado e minimamente mais lúcido, fui à tal pousada São Francisco novamente, e estava lá a tal da dona, que o cara do hotel me disse ser a dona Mariana, mãe do prefeito da cidade. Fui lá, ela me atendeu direitinho, disse que todos os dias de segunda a segunda ela servia almoço e janta, pois fazia comida sob encomenda para a Companhia Elétrica de Minas Gerais, que andava fazendo obras por lá. Me levou para ver os chalés que ela aluga, por quinze reais a diária, na verdade são apartamentos com banheiro e televisão, bem simples sem chegar a ser precário, nos fundos de um terreno à beira do rio São Francisco (não se enganem, naquele trecho o São Francisco é pouco mais que um riacho). Vi que tinha me dado bem, fiquei num lugar onde teria comida boa e barata, e acomodação ampla e tranqüila. A dona Mariana deu uma ajeitada lá no quarto, trouxe toalha, sabonete e roupa de cama, e se mandou. Tomei um banho, lavei roupa, e quando já era perto de sete horas subi para jantar, que depois das sete ela e as funcionárias se mandavam e fechavam tudo.
Eu nem estava com muita fome, mas a comida era bem boa, feijão, arroz, farofa de carne, mandioca, vagem, essas coisas. Me servi direto no fogão, ocupei um cantinho da mesa, peguei uma garrafa de água na geladeira, e mandei ver. Acabei repetindo duas vezes, mas isso só porque o prato, apesar de fundo, era meio pequeno, hehe. Saindo dali, fui pro quarto, onde ajeitei poucas coisas, vi um pouco de TV, e logo fui dormir. Tive de levantar umas duas vezes para matar bichos voadores que entraram enquanto deixei a janela ou a porta aberta com a luz ligada, mas exceto por isso o silêncio era absoluto, e dormi muito bem, pretendendo levantar cedo no outro dia para visitar a Cachoeira Casca D'Anta, uma das maiores do país.

Mas essa história, e outras, só conto amanhã ou depois, pois estou já de saco cheio de escrever, e pretendo sair para jantar e dar uma volta rápida, pois faz uma cinco horas ou mais que tou na LAN. Tudo para os meus queridos leitores. Um abraço a todos, e até breve!