Thursday, July 26, 2007

Dia sem número (a viagem já acabou!) - não vão poder me acusar de não terminar a história!

E aí, Galera

Já não era sem tempo! Há quem diga que a produção artística ou intelectual consiste de 10% de inspiração e 90% de transpiração. Apesar de concordar parcialmente, por respeito ao olfato literário de meus queridos leitores e leitoras, prefiro escrever apenas quando a inspiração se manifesta com mais generosidade, como creio ser o caso agora. Já cheguei em casa há duas semanas (na verdade há vários meses, pois este post começou a ser escrevido em março e terminado em julho), as aulas estão muito interessantes, e o descanso gerado pelo desemprego dá a impressão de que minha cabeça renderá muito nos estudos este semestre*. Tomara. Felizmente, para concluir, minha ânsia nômade foi substancialmente aplacada pela viagem e tudo que nela ocorreu, o que é muito bem-vindo na vida de alguém que está novamente acorrentado a limitações geográficas e cronológicas institucionais, mesmo que voluntariamente e por um bem maior. Lá vamos nós, então.

A quarta feira, dadas as condições, até que começou bem. Acordei com o despertador do Edgardo tocando, já que pretendíamos tomar o café nem tão tarde para seguir viagem nos esquivando do sol que prometia ser forte. A perna estava aparentemente bem, apesar de estar exsudando um pouco daquele característico líquido seroso e levemente amarelado das feridas extensas e não tão profundas. Foram deixadas algumas manchas no lençol, por esse motivo, mas fico com a impressão de que lençóis de hotel estão acostumados a manchas piores. Mesmo tendo levantado cedo, para tomar o café, a preguiça custou a passar, e fomos nos arrumando do mesmo modo de sempre: veste um par de meia, senta, pensa, veste o outro, fecha um alforje, senta, levanta, pensa, guarda o telefone na pochete... Acabamos saindo já perto da hora do almoço, com sol forte mas com bastante disposição para pedalar. A perna, que apresentou alguma rigidez no início da pedalada, assim que aqueceu conseguiu trabalhar livre de dor, com a força normal e boa amplitude de movimento. Não fiz curativo, de modo que a ferida ficou exposta ao ar, mas coberta com uma camadinha de Merthiolate.
O trecho de travessia urbana de Criciúma, que já conhecíamos bem dada a quantidade de vezes que passamos por ali voltando do Rio do Rastro ou do Corvo Branco para “economizar” trechos da BR-101, foi veloz, trepidante, com alguma tensão normal por causa do trânsito, e bastante quente. Dali, seguimos a Forquilhinha e depois Meleiro, onde decidimos almoçar. Para chegar a Meleiro, é necessário sair da SC-108, por onde vínhamos com um leve vento contra e um acostamento bom, apesar de não muito largo. Optamos por parar em um posto de gasolina, que servia um prato feito farto e barato. Não consegui comer tudo, talvez por efeito do analgésico que ainda tomava, talvez por causa do calor, talvez por causa do cansaço provocado pelo ritmo meio forte (demais, para quem pretende pedalar o dia todo) em que vínhamos. O Edgardo sim, esse limpou o prato mesmo, e obviamente tomamos um refri de dois litros que sumiu com facilidade em nossas goelas.
Na hora de sair da cidade em direção a Turvo, resolvemos tomar um atalho, e esse atalho passava por uma rótula com vários ramos. Analisamos a placa meio confusa, e concordamos que devíamos seguir por um determinado braço asfaltado, e lá fomos nós. O vento continuava contra, e tomamos umas boas pancadas de chuva, que já havia começado no posto de gasolina, devido à (esperada) frente fria, que chegara. Ao passarmos pela localidade de Morro Grande, achei o local meio pouco familiar demais para uma localidade por onde supostamente já havia passado dirigindo há nem tanto tempo, mas enfim... Agora, quando o asfalto virou ESTRADA DE TERRA, aí sim tudo ficou muito esquisito. Perguntamos a dois rapazes num carro envenenadinho que vinha pela estrada como fazer para ir a turvo. Eles disseram que era necessário ir até Meleiro e pegar à direita. Mas aí dissemos que já estávamos vindo de Meleiro, e eles fizeram aquela cara de intrigados (“como assim?”), e eu mais ainda. Liguei o GPS (coisa que já deveria ter feito) e constatei, com aquela cara de quem vê o artilheiro do seu time errar um pênalti, que de fato havíamos andado uns dez quilômetros para fora do caminho, indo parar na cidade de Morro Grande. O carro dos caras acabou apagando, e não queria ligar mais. Perguntaram se eu tinha alicate. Eu até tinha, mas na chuva, constatando que acabaria pedalando 20km de graça, achei que antes de mais nada minha situação era pior que a deles, e disse que não tinha, seguindo em direção a Meleiro. Ao menos a volta foi com um bom vento a favor, e conseguimos alcançar a estrada verdadeira com facilidade. Ao chegar perto de Meleiro, encontramos um senhor em um carro, também confuso por causa da placa, que escapou de andar os tantos quilômetros a mais porque casualmente resolveu perguntar para nós.
Dali, fomos a Turvo, ainda pelo asfalto e ainda com chuva, que já começava a diminuir (as nuvens estavam se dirigindo para o norte). O ritmo já não era tão forte, afinal tínhamos pedalado bastante já, e não queríamos acabar com a energia necessária para o dia seguinte. A idéia era ir a Jacinto Machado, e ao olhar o GPS nos demos conta de que era muitíssimo provável que houvesse um trecho de estrada de chão que serviria como atalho, nos livrando de ter que ir até Ermo pelo asfalto para só então ir para Jacinto Machado. Pedi informação em um posto de gasolina, e de fato me explicaram detalhadamente como ir até lá, destacando que faltavam apenas mais uns doze quilômetros. Beleza.
Seguimos então pela estrada de terra e cascalho, bastante pesada e fofa, com muitas pedras e poças de água suja. Eu naquele momento estava voltando a enfrentar um problema de assadura ultra-ardida. Creio que devido a estar tomando analgésico, senti menos dor na bunda do que seria o normal, e possa ter ficado muito tempo sem trocar de posição, gerando falta de circulação e deterioração da fisiologia cutânea das polpinhas, que agora ardiam como se lá houvesse urtiga. Para piorar, o terreno trepidante e a canseira avançada.
Logo no início, passamos por uma grande ponte de madeira, sobre um rio bastante cheio e muito bonito, onde fizemos um lanche à base de Club Social, sentados sobre as grandes pedras que se empilhavam à beira da estrada. O terreno fofo fez com que pedalássemos com mais esforço, o que deu um certo calor, e como o céu estava limpando, a idéia de um banho de rio estava bastante tentadora, mas não houve condição para mim devido ao machucado ainda muito cru e infeccionável. O Edgardo acabou não tomando também, para não se molhar muito, mas ambos molhamos ao menos os braços e a cabeça, coisa que sempre dá um vigor novo à pedalada. E lá fomos nós, afinal já faltavam poucos quilômetros para a cidade.
Logo adiante, depois de algumas curvas, havia outra ponte, esta em condições totalmente diferentes: o rio era bem mais estreito, mas estava muito mais cheio, e a água estava passando em um nível cerca de meio metro mais alto do que a ponte, criando aquela conformação de correnteza por sobre a ponte, um degrau mais alto de água rio acima, com vários galhos grandes de árvores presos pela ponte-represa, e o súbito rebaixamento do fluxo de água na borda “rio abaixo” da ponte, onde a água atinge maior velocidade e logo em seguida uma grande turbulência, levando a reforçar bastante a cautela na hora de cruzar a ponte. O Edgardo atravessou primeiro, caminhando com a bicicleta no ombro e água pelo joelho, com passos firmes, atingindo o outro lado sem dificuldade. Eu estava determinado a passar pedalando, mas ao tentar fazer isso vi que algo estava trancando a pedalada: a água empurrava a corrente e o paralama para o lado, com força, e alguma dessas coisas trancava e a roda era impedida de girar. Acho que até foi melhor assim, pois não tenho certeza de que conseguiria manter o equilíbrio, e acabei também atravessando com a bicicleta nas costas, o que foi mais difícil devido ao peso mal distribuído do alforje sobre o bagageiro. Para meu alívio, o motivo da pedalada trancada devia estar relacionado ao fluxo de água contra a corrente, já que foi possível pedalar normalmente do outro lado, ou ao menos tão normalmente quanto permitiam o cansaço e as assaduras.
Após cruzarmos o rio, tivemos de andar poucos quilômetros mais até entrar no perímetro urbano de Jacinto Machado, uma cidade pequena, situada na planície ao pé dos morros da Serra do Mar. Assim que chegamos, fomos a algum posto de gasolina nos informar sobre algum hotel, e nos informaram que havia um hotel junto à rodoviária, que por sinal era o único da cidade.
Ao chegarmos lá, fomos recebidos por um senhor que era também o dono de um restaurante, que ficava no térreo do hotel, atrás da rodoviária da cidade. Pedimos um quarto, que era bem barato, e, a pedido dele, deixamos as bicicletas dentro do restaurante, onde passariam a noite, e levamos nossas tralhas para cima. O fato de o restaurante possuir a parede frontal toda envidraçada deixou o Edgardo bastante apreensivo, mas eu imaginei que não haveria problemas com as bicicletas (felizmente não houve mesmo...). Fomos ao quarto, e enquanto eu tomava banho o Edgardo foi à procura de uma farmácia para comprar repelente de insetos, que havia muitos em nosso quarto, cuja janela estava de frente para um terreno grande com vegetação alta e prováveis poças d’água. Durante o banho, lavei bem as roupas, luvas, sapatilhas, e depois me sequei bem e passei bastante hidrocortisona na bunda. Ao final da viagem, já estava me sentindo O doente, tomando analgésico, passando corticóide na bunda... Sem falar de uma unha encravada no dedão do pé, que estava branquinha de pus já...
Ao chegar o Edgardo, tomou também um banho e lavou e estendeu suas roupas. Uma pena que o tempo continuasse úmido e que o tempo que teríamos para deixá-las secando fosse curto, porque a estrutura para estender roupa molhada de DUAS pessoas, dentro do quarto, era precária. Fomos então jantar.
No restaurante, havia um elemento sentado à mesa, magrão, cara duns quarenta anos, cabelo oxigenado, pele queimada de sol... O dono do restaurante perguntou se a gente se importava de sentar à mesma mesa, pois assim seria mais fácil nos servir, e aceitamos. A comida foi trazia, em grande quantidade: macarrão, carnes com molho, salada, mandioca, feijão e arroz... Enquanto comíamos, fomos conversando com o elemento esquisito, mais eu do que o Edgardo. Enquanto, para mim, travar contato com aquele tipo de elemento já havia se tornado um dos atrativos de turismo antropológico da minha viagem, o meu amigo estava extremamente desconfiado e contrariado, dado o conteúdo que a conversa ia tomando. Já explico.
Enquanto comíamos carne, feijão, o sujeito estranho (chamemo-lo “Alemão”, embora não apresentasse grandes indícios de ascendência germânica) pegou o pode de farinha de mandioca e, após servir um pouco em seu prato, perguntou-nos, com aquela cara de cachorro com fome: “vocês querem farinha? vocês GOSTAM de farinha?”, e nós, polidamente, dissemos que não, obrigado. Ele então perguntou como a gente pedalava, por que, por onde, se a gente gostava de pedalar, se pedalava muito, se a gente TOMAVA ALGUMA COISA para pedalar... Não demorou para que ele dissesse que era chegado num pó, que trabalhava por aí nos interiores vendendo pôsters (vimos, no quarto dele, a caminho do nosso, pilhas e pilhas de pôsters com aquelas molduras de madeira ordinária), que tinha uma boate em Araranguá, que ele preferia ficar longe da boate o máximo de tempo possível para não gastar todo o dinheiro dele em pó – o problema é que ele adorava! – e assim foi contando. A essa altura, o Edgardo já tinha se mandado para o quarto, e eu, assim que terminei de comer, me fui também, a tempo de ser repreendido por dar tanta trela para um psicopata (“mas eu só tava conversando...”) e por não me importar de deixar as bicicletas a noite toda sem cadeado dentro do restaurante envidraçado onde elas obviamente corriam um sério risco de ser roubadas. É possível, mas em Jacinto Machado?
O fato é que não foi o medo ou o receio que nos dificultou o sono. Durante a noite, fomos atacados por uma horda insaciável de mosquitos, e nem aplicações massivas de repelente (inclusive jatos de spray diretamente no canal auditivo) puderam aplacar a ira dos insetos alados. Pra piorar, eu estava com a perna bem incomodativa, tinha que me virar pro lado toda hora para tentar me ajeitar, e a cada virada a perna ardia muito, muito. Sem falar no calor sufocante, que nos fazia suar, e nos obrigava a deixar a janela aberta, já que não havia ventilador, o que também facilitava a secagem da roupa e a entrada dos mosquitos. Para meu tormento, o Edgardo conseguiu pegar no sono, e começou a roncar paquidermicamente... Enfim, uma noite de cão, que me rendeu pouco ou nenhum do necessário sono que precisaríamos no dia seguinte, para ir a Cambará do Sul.

* Durante o semestre, fiz um curso de ultrassonografia músculo-esquelética, voltando a trabalhar no mês seguinte ao término do seguro-desemprego. Viajei alguns milhares de quilômetros de avião para visitar a Natalia, de Londrina, atualmente minha namorada amada e, de preferência, minha futura esposa. (aquela em cuja casa cheguei podre e saí recuperado, lembram?)