Wednesday, November 15, 2006

Vagabonding: um guia incomum para a arte da viagem de longo-prazo pelo mundo

"Quanto mais nós associamos experiência com valor monetário, mais nós pensamos que dinheiro é o que precisamos para viver. E quanto mais associamos o dinheiro à própria vida, mais convencemos a nós mesmos de que somos pobres demais para comprar nossa liberdade."

Caros colegas, assim como a vida e a natureza, que sabem aonde vão, também os blogs, aparentemente, tendem e seguir esses sábios fluxos na direção de seu caminho natural.
Dando seqüência aos clippings de fontes de inspiração, aqui está o prefácio (?) de um recém-por-mim-descoberto livro escrito por Rolf Pott sobre a arte de "vagabundear", ou ser um andarilho - já que vadio e vagabundo, apesar de claramente associados com a condição itinerante, também são sinônimos daquilo que não presta.
Dada a profundidade contundente com que a abordagem foi feita, pode-se mesmo dizer que este clipping é o golpe de misericórdia, a cereja no bolo do inconformismo e aborrecimento que leva o pacato cidadão a querer romper as raízes e transformar o ar livre em lar. Como estudar ainda faz parte dos pré-requisitos do meu papel social, não pretendo poluir este clímax a não ser que ache outra fonte de inspiração ainda mais visceral.
Eu mesmo traduzi a partir de < http://vagabonding.net/excerpt/ >, portanto há algumas pequenas divergências que não devem prejudicar a mensagem.

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A partir desta hora eu ordeno a mim mesmo liberto de limites e linhas imaginárias
Indo para onde quiser, meu próprio mestre total e absoluto
Ouvindo os outros, considerando bem o que eles dizem
Parando, procurando, recebendo, contemplando
Gentilmente, mas com inegável vontade
Despindo-me das amarras que me conteriam

Walt Whitman, “Song of the Open Road”


Declare Sua Independência

De todas as ultrajantes frases que se escuta nos filmes, há uma que se destaca para mim. Ela não veio de uma comédia debochada, um pastelão esotérico de ficção-científica, ou um thriller de ação recheado de efeitos especiais. Ela saiu de “Wall Street”, de Oliver Stone, quando o personagem de Charlie Sheen – um promissor talento no mercado de ações – está falando com sua namorada sobre seus sonhos.

“Eu acho que se eu conseguir ganhar uma boa grana antes dos trinta anos e sair dessa vida,” ele diz, “vou poder atravessar a China na minha motocicleta.”

Quando eu vi esta cena no vídeo há alguns anos atrás, eu quase caí da poltrona, aturdido. Afinal, Charlie Sheen ou qualquer outra pessoa poderia trabalhar por oito meses como limpador de privadas e ter dinheiro suficiente para atravessar a China de moto. Mesmo se ele não tiver ainda sua própria moto, um outro par de meses esfregando privadas vai lhe pagar o suficiente para comprar uma moto quando chegar à China.

O ponto é: a maioria dos Americanos provavelmente não acharia essa cena de filme estranha. Por alguma razão, nós vemos as viagens longas por terras distantes como um sonho recorrente ou uma tentação exótica, mas não algo que se aplique aqui e agora. Ao invés disso – devido ao nosso insano compromisso com o medo, a moda, e pagamentos mensais de coisas de que não precisamos realmente – deixamos nossos sonhos em quarentena em troca de curtos e frenéticos surtos turísticos. Desta forma, enquanto aplicamos nosso patrimônio em uma noção abstrata chamada “estilo de vida”, viagens se tornam apenas mais um acessório – uma experiência encapsulada que nós compramos da mesma forma que compramos roupas ou móveis.

Há não muito tempo atrás, eu li que quase um quarto de milhão de pacotes curtos de férias sediados em monastérios e conventos foram comercializados por agentes de turismo no ano 2000. Retiros espirituais da Grécia ao Tibete transformaram-se em atrativos turísticos, e os agentes de viagem atribuíram esse crescimento ao fato de que “as pessoas ocupadas e bem-sucedidas estão procurando por uma vida mais simples”.

O que ninguém se importou em destacar, obviamente, é que comprar um pacote de viagem para encontrar uma vida mais simples é como tentar usar um espelho para ver que aparência você tem quando não está se olhando no espelho. Tudo que é realmente vendido é a noção romântica de uma vida mais simples, e – da mesma forma que por mais que você vire a cabeça ou os olhos, jamais vai conseguir se ver distraidamente no espelho – nenhuma combinação de uma semana ou dez dias de férias vai realmente afastar você do tipo de vida que você leva em casa.

No fim das contas, esse casamento forçado entre tempo e dinheiro acaba sendo um modo de nos manter em um padrão circular. Quanto mais nós associamos experiência com valor monetário, mais nós pensamos que dinheiro é o que precisamos para viver. E quanto mais associamos o dinheiro à própria vida, mais convencemos a nós mesmos de que somos pobres demais para comprar nossa liberdade. Com esse tipo de padrão mental, não admira que tantos americanos considerem longas viagens ao estrangeiro como algo que pertence ao mundo dos estudantes, desajustados, e ricos desocupados.

Na verdade, viagens longas não têm nada a ver com esses indicadores – idade, ideologia, renda – mas têm tudo a ver com perspectiva de vida. Viagens longas não têm a ver com ser um estudante de faculdade, têm a ver com ser um estudante da vida diária. Não são um ato de rebelião contra a sociedade, são um ato de comunhão com a sociedade. Não requerem uma grande quantidade de dinheiro; requerem apenas que caminhemos pelo mundo de uma maneira mais espontânea.

Essa maneira espontânea de caminhar pelo mundo sempre foi intrínseca da tradição de honrar o tempo a que pertence o andarilho.

Ser andarilho envolve tomar um longo período da sua vida normal – seis semanas, quatro meses, dois anos – para viajar o mundo do seu próprio jeito.

Mas além da viagem em si, ser andarilho é uma forma de ver a vida. Significa usar a prosperidade e a possibilidade da era digital para aumentar suas opções pessoais, não suas posses. Significa procurar aventura na vida normal, e vida normal na aventura. Ser andarilho é uma atitude – um interesse amistoso em pessoas, lugares, e coisas que fazem de uma pessoa um explorador no sentido mais verdadeiro e vívido da palavra.

Ser andarilho não é um estilo de vida, nem uma tendência. É apenas uma maneira incomum de olhar para a vida – um ajustamento de valores do qual a ação é conseqüência natural. E, tanto quanto qualquer outra coisa, ser andarilho tem a ver com o tempo – nosso único patrimônio real – e a maneira como escolhemos utilizá-lo.

O fundador do Sierra Club, John Muir costumava apresentar admiração com os apressados viajantes que visitavam Yosemite para irem embora após poucas horas de contemplação. Muir chamava esse pessoal de “pobres-de-tempo” – pessoas que eram tão obcecadas com os afazeres da sua riqueza material e condição social que não podiam gastar o tempo necessário para experimentar o esplendor da vida selvagem da Sierra californiana.

Quase um século depois, o naturalista Edwin Way Teale usou o exemplo de Muir para lamentar o ritmo frenético da sociedade moderna. “Liberdade como Muir conheceu”, ele escreveu em seu livro Autumn Across América, de 1956, “com sua fartura de tempo, seus dias não regimentados, sua amplitude de escolhas... tal liberdade parece mais rara, mais difícil de alcançar, mais remota a cada nova geração.”

Mas o lamento de Teale pela deterioração da lierdade pessoal era uma generalização tão vazia em 1956 quanto ela é agora. Como John Muir sabia bem, ser andarilho nunca foi algo controlado pela instável definição pública de “estilo de vida”. Ao invés disso, sempre foi uma escolha privada dentro de uma sociedade que está sempre nos cobrando para fazermos o contrário.

O comportamento e as motivações do Homo turisticus

Dando seqüência ao clipping pré-viagem, achei interessante colocar aqui alguns parágrafos extraídos do artigo "O turismo e a ferrovia" < www.am.unisal.br/graduacao/tur/pdf/tcc-mariaameliamoscom.pdf > que fala sobre uma característica fundamental do "turista" (Homo turisticus): a consciência da duração limitada de sua folga e a intenção de retornar. O turista, ao contrário do nômade, interpreta sua movimentação como uma pausa necessária, mas não pretende e/ou provavelmente não suportaria uma ruptura com o sedentarismo.
Aqui cabe questionar o papel da real dimensão do livre-arbítrio, tanto para o H. turisticus quanto para o aspirante a nômade: ambos sofrem pressão de ambos os lados, tanto o turista que é periodicamente compelido a fugir da condição de ator social, quanto o nômade que é periodicamente forçado a manter vínculos com a sociedade urbana-industrial por causa das necessidades de subsistência. O caráter pendular de tais trocas de estado ocorre provavelmente porque tanto a vida sedentária quando o nomadismo em tempo integral exigem uma carga de energia pessoal tão elevada que tornam a continuidade por tempo indeterminado praticamente insustentável. Quanto ao livre-arbítrio, tanto o turista tem a vontade consciente de representar seu papel social (muitas vezes tacitamente imposto), por considerá-lo necessário para si e para os outros dentro de seu esquema de valores, quanto o nômade vê a necessidade de negar-se a essa representação. É difícil, nesses casos não imaginar até que ponto essas convicções são uma defesa neurótica contra a visão de uma realidade que desagrada, nem imaginar que o pior cego nao é o que não quer ver, mas aquele que só vê o que quer.

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"Cotidiano. Segundo o dicionário Larousse, quer dizer: “aquilo que se faz todos os dias, o que acontece habitualmente”. Por força do comportamento das pessoas, esta palavra assumiu conotação negativa e por conseqüência da palavra o cotidiano também tornou-se negativo, pesado. Ter de trabalhar todos os dias, suportar o tumulto das ruas, correr contra o relógio, expor-se à poluição, agüentar o cansaço, enfim, tudo o que acontece cotidianamente, somente por ser cotidiano é ruim e deve, de tempos em tempos, sofrer uma descontinuidade que possibilite recuperar o indivíduo para que este suporte mais um período exposto a este pesado fardo – o cotidiano. Estas descontinuidades recebem o nome de finais de semana ou férias. Estes intervalos são ansiosamente esperados pelos homens e para que seu manancial de recuperação seja explorado em sua total potencialidade, normalmente, durante sua ocorrência, faz-se uso da prática do turismo nas suas mais diversas especificidade e formas. Jost Kripendorf, em Sociologia do Turismo, diz que “o homem em busca de seu equilíbrio vive o ciclo da reconstituição”, ou seja, “o homem de todos os dias se torna turista para logo após voltar a ser o homem de todos os dias”. Este ciclo propicia aohomem equilibrar suas tensões. O homem de todos os dias de Kripendorf é aquele que sofre as tensões diárias impostas pela sociedade em que atua. Viver convencionalmente traz consigo uma grande quantidade de deveres e posturas a serem cumpridas e apresentadas. “Representar” tal papel durante determinado tempo pode ser absurdamente estressante e isto requer uma descontinuidade de representação, provavelmente, por esta razão, o homo turisticus procura fazer tudo diferente em seu período de férias. Como diriaMarx, “tudo parece estar impregnado de seu contrário”. Também, segundo Enzensberger, foram estes sentimentos antagônicos, entre adorar e odiar o trabalho nascente da Revolução Industrial, que alavancaram a atividade turística nos meados do século XIX. Tanto mais a sociedade burguesa fechava-se, mais seus cidadãos buscavam escapar para viverem o seu contrário como turista. Uma cena comum e até, poderia-se dizer, cotidiana, são os congestionamentos existentes nas saídas das grandes cidades toda vez que anuncia-se um feriado prolongado. A vontade de ausentar-se do cotidiano é tão forte nas pessoas nestes momentos que quase“vemos” tal sentimento materializar-se.
Pensar que este é um sentimento provocado pela atual condição sócio-econômica pode ser enganoso, haja visto ser possível, quando recorremos à história, verificar estes mesmos movimentos e sentimentos desde os tempos da pré-modernidade ou início da era moderna. O comportamento do homem romântico, que foi agente determinante para o advento da chamada modernidade, era predominado pelas emoções, com grande preocupação para o subjetivo que propiciava profundas reflexões. Com as Revoluções burguesas o indivíduo com as características do homem romântico tomou consciência da liberdade. Liberdade esta, que estava sendo tolhida pelas conseqüências deste mesmo processo revolucionário. O mundo do trabalho e a estruturação política do momento ameaçavam sufocar a liberdade recém incorporada. Esta ambigüidade fez o homem moderno, já sufocado pelo trabalho, libertar-se através de sua imaginação “criando” sinônimos de liberdade representados pela imagem das paisagens, situadas distantes da chamada civilização ou aglomerados urbanos – as cidades. A classe burguesa cada vez mais procurava ausentar-se dos centros em direção à natureza e ao exótico, buscava os campos, as montanhas, as praias. Era preciso buscar o intocado, pois o intocado havia tornado-se uma mistificação ideológica. Nesta época, as características capitalistas já delineavam-se, e o desejo de consumo da visita aos locais “libertadores” era visível. Thomas Cook aproveitou-se deste sentimento e, em julho de 1841, realizou uma viagem entre Loughborough e Leicester para os membros de uma associação de abstêmios. Quatro anos após, fundou sua agência de viagens e em 1845 organizou a primeira viagem em grupo para diversão turística. Iniciava-se assim, o turismo para grandes grupos ou a produção em série do turismo. Com o desenvolvimento do turismo, também, para a pequena burguesia, as imagens remotas eleitas no romantismo como representativas da natureza e da história cristalizaram-se em Zoológicos, Jardins Botânicos e Museus."

Tuesday, November 14, 2006

Nômades, Exilados e Cidades

Este texto fala do nomadismo e das ferrovias, mas se aplica, guardadas as diferenças, a qualquer forma de nomadismo. Foi extraído da revista Risco e está disponível em <www.eesc.usp.br/sap/revista_risco/Risco1-pdf/art2_risco1.pdf>.
Abaixo, seguem trechos que achei os melhores:


"Nômades e nomadismo são conceitos que dizem respeito a uma forma de territorialidade específica,caracterizada pela mobilidade e dispersão geográfica e que se realiza sob o princípio da errância, o que é –como bem lembram os situacionistas – totalmente distinto da viagem turística. A viagem para o nômade é o tempo da plenitude de sua territorialidade. Paraele, seu acampamento é sempre provisório, um lugar prestes a ser abandonado. Assim, quanto mais forteo nomadismo de um certo grupo cultural, menor seu tempo de permanência em um acampamento.Tal fato confere apenas aos territórios por onde realiza sua deriva – sejam eles desertos de gelo ou de areia, atravessados por esquimós ou beduínos, ou então florestas ou estepes, percorridos pelos últimos yanomamis ou românis – o espaço peculiar que dá sentido pleno à sua territorialidade."

"Recordemos aqui, mais uma vez, Thoreau, em um pequeno trecho de seu diário, um breve ensaiointitulado “Walking”, datado de 1862, em que comenta uma das formas de nomadismo. Lemos aí sobre a arte do caminhante e sobre
“quem tem o gênio para sauntering , cuja palavra é magnificamente derivada ‘de um povo preguiçoso que andava pelo campo, na Idade Média, esmolando, sob o pretexto de ir à Sainte Terre ’, isto é, à Terra Santa. (...) Aqueles que nunca foram à Terra Santa em suas caminhadas, como pretendiam, são, de fato, meros preguiçosos e vagabundos; mas são saunterers no bom sentido, como eu assim entendo. Alguns, entretanto, derivam a palavra de sans terre ,sem terra ou sem casa, a qual, entretanto, no bom sentido, significará não ter uma casa em particular,mas, do mesmo modo, estar sempre em casa. Este é o segredo do bem-sucedido andarilho (sauntering). Aquele que permanece todo tempo quieto em uma casa pode ser o mais vagabundo de todos; porém o andarilho, no bom sentido, não é mais vagabundo que o rio com seus meandros, que está todo o tempo persistentemente buscando o caminho mais curto para o mar. Mas eu prefiro a primeira, a qual é, defato, a derivação mais provável. Para todos, caminhar é uma sorte de cruzada, pregada por algum Pedro o Eremita dentro de nós, que nos leva seguir em frente e reconquistar a Terra Santa das mãos dos infiéis.”

"Lembremos aqui também os grupos sociais que adotam formas de nomadismo metropolitano, como ciganos roms, circenses, vagabundos (isto é, pessoas que recusam a ideologia do trabalho, preferindo a precariedade de uma vida errante à submissão de seus corpos e espíritos livres) e mendigos (ao menos no sentido original, daqueles que fizeram a opção pela vida de mendicância). Ainda que com outras formas, a adoção de práticas nômades pode estar também presente em certos grupos sociais tipicamente urbanos – como é o caso dos punks com sua deriva pela metrópole ou dos michês realizando a deriva homossexual pelo centro paulistano."

"A territorialidade nômade opõe-se àterritorialidade sedentária, cujos princípios de fixaçãoe concentração espacial, mas também de confinamentoe esquadrinhamento, promovem a urbanizaçãodo território, isto é, a criação de uma rede de cidadesinterligadas por meios de comunicação. É nessesentido que não é possível concebermos uma cidadefora de uma rede de núcleos urbanos hierarquizados,pois uma cidade isolada é uma cidade morta."

"Vejamos agora as noções de exilados e exílio. Elas remetem a desterro, degredo, expatriação, termos que significam a perda de toda e qualquer territorialidade. É assim que distinguiremos aqui os nômades dos exilados na cidade, embora no que se refira aos modos de sobrevivência de cada um desses grupos encontraremos inúmeras semelhanças. Entretanto, o verdadeiro nômade não reclama qualquer direito de cidadania, já que a cidade é para ele apenas local de passagem, locus transitório em cujos interstícios pode encontrar abrigo provisório e de cujas sobras é possível extrair algum alimento. Por ter cultura própria, que se opõe radicalmente à culturaurbana, o nômade verá a cidade apenas como fonte de algum benefício a ser aproveitado, mas jamais como um direito que lhe está sendo negado. No caso das sociedades “primitivas”, se aceitamos a formulação de Pierre Clastres (1990) de que são sociedades contra o Estado, podemos afirmar que o nomadismo é uma das formas de sociabilidade inventada por tais sociedades para impedir o aparecimento do Estado, enquanto a cidade é o modo peculiar de o Estado se manifestar no território. Sociedades contra o Estado, os caçadores nômades da floresta são também sociedades contra o urbano. Já o exilado é aquele que perdeu sua cidadania e se ressente dessa falta, clamando pelo territóriodo qual foi expulso. Desse modo, seus acampamentos não constituem uma forma deterritorialidade alternativa, embora possam vir a recriar espaços autônomos que resgatam o sentido originário da rua e da praça. Reproduzem, apesar da precariedade e mobilidade de seus abrigos, o traçado sedentário, adotando quase sempre um desenho que reafirma o esquema urbano tradicional."

"Mas também encontramos outra categoria de exilados nas metrópoles contemporâneas. Aquela dos que se auto-exilam, como os que freqüentam shoppings centers – usinas de uma sociabilidade confinada e artificializada em uma arquitetura sintética –, ou os que habitam condomínios fechados ou casas amuralhadas com grades e guaritas, à maneira dos presídios. Para muitos, é claro, o autoexílio é imposto. Pensar a cidade talvez não seja possível sem concebermos sua muralha, mesmo quando esta é invisível. De qualquer modo, a concepção de enclaves na cidade já está presente nos primeiros subúrbios-jardins erguidos naInglaterra com muros e portões delimitando as fronteiras de um modo de vida comunitário, que pretendia ser uma alternativa à metrópole, como Hampstead, próximo a Londres, construído em 1907."

"As metrópoles e grandes cidades contemporâneas são atravessadas por fluxos diversos, que se ampliam progressivamente em decorrência da expansão dos novos meios tecnológicos de comunicação e transporte. Em especial o fluxo de idéias nunca alcançou velocidades de intercâmbio e difusão tão grandes como nos dias de hoje. Os nômades também navegam por essas ondas, incorporando as novas ferramentas segundo seus interesses. Como fizeram com os trens, fazem hoje via internet, a última rede construída pelo capital. Se aos nômades nada mais resta que as últimas formas de uma cultura exilada, aos exilados sobra apenas a luta pelo direito à cidade, e para ambos a esperança de uma cidade sem muralhas, de estações sem catracas e composições sem fiscais."

A Bicicleta como Ato de Resistência (por Odir Züge Jr.)

Olá, pessoas
Como meus amigos sabem, em poucos dias vou estrear meu sonho de testar uma vida de ciclonômade, pedalando pelo Brasil por 3 meses. Enquanto isso, para não criar teia de aranha no blog tão novinho, vou publicando textos que se encaixem no contexto de nomadismo. Discussões sobre o nomadismo, semi-nomadismo e pseudo-nomadismo virão em oportunidades futuras, já que é primeiro necessário ter o que escrever, para depois escrever. Lá vai o primeiro texto.

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"Pedalar pode ser um ato de resistência. Essa é a conclusão que chego após ler um texto de filosofia de um amigo, Alysson Leandro B. Mascaro, doutorando em filosofia do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, na qual é professor, bem como na Universidade Mackenzie. O artigo nada fala de bicicletas, mas, de modo direto e conciso, discute o conceito de "justo", do sentimento de justiça que temos: o individual, inaugurado por Santo Agostinho, e o social, desenvolvido por Aristóteles, e esquecido após o renascimento. Explico-me. Para Aristóteles (384-322 a.C.), justiça é "um bem para o outro". Ampliando o entendimento, isto quer dizer que nada posso fazer de justo que prejudique o outro, ou, no caso, os outros, a sociedade. Para Santo Agostinho (354-430), justo é quem Deus "louva". É uma característica inerente à pessoa, independe de seus atos. Calvino desenvolverá o tema, e quem Deus "louva" perceberá isso até por sua prosperidade material – facilmente se chega à total falta de escrúpulos do yuppie que, com orgulho, expõe sua riqueza. Ser rico é bom, danem-se aqueles que não atingiram a riqueza. Não há, portanto, nada de errado em usar um carro que vale milhões e gasta muito combustível, tudo poluindo, quando se é um escolhido de Deus. Esta linha de raciocínio nos é imposta desde criança. A publicidade, inclusive, vende produtos explorando a nossa necessidade de sentirmos que somos pessoas de "sucesso". Fumantes são mostrados como pessoas de sucesso. Carros são vendidos, por meio de publicidade que nos induz a acreditar que dirigi-los é a melhor coisa do mundo: somem os buracos do asfalto, o trânsito, uma bela mulher se sentará no banco de passageiros. Donas de casa que compram a margarina X passam a viver em lares maravilhosos: elas são bonitas, os maridos não possuem barrigas proeminentes, as crianças se comportam bem à mesa naturalmente, sem qualquer desgaste na educação das mesmas... Assim são todas as propagandas. Mesmo os nossos heróis são pessoas que, para atingir o sucesso, pouco fizeram pelos outros. Quando adquirem milhões é que passam a contribuir, aqui e ali, com algumas entidades beneficentes. Ou seja, o "bem para os outros" vem, quando vem, em conseqüência de se ser um justo – e não enquanto pré-requisito para se ser um "justo". É obvio que as coisas não funcionam assim, pois a realidade se impõe, principalmente se estivermos andando de bicicleta. Bicicletas são vulneráveis. Não adianta imaginar que o chão é macio, pois ele não o será quando se cair. Não adianta imaginar que está tudo bem, esquecer os problemas sociais, pois, a qualquer momento, pode-se apresentar um ladrão armado e levar a bicicleta. Depredada natureza, a trilha onde se pedala estará suja, e o pneu furará e rasgará naquele pedaço de lata de sardinha. Não há como se pedalar e permanecer alienado aos fatos que nos circundam. Os motoristas mal-educados e individualistas nem prestam atenção no ciclista, a não ser quando este, junto com a bicicleta, encontra-se debaixo do carro. Além do mais, o ciclista é um estorvo para a lógica individualista do trânsito – que é mero reflexo da lógica individualista do mundo ocidental atual – a lógica de "se matar" gastando pra comprar um carro com a fim de se economizar o esforço físico no transporte. Carro que, na verdade, foi comprado para se "ser alguém" – o "justificado" agostiniano, merecedor de salvação nos céus, ou o "justificado" yuppie, merecedor da salvação terrena. Quem, no mundo moderno, furta-se a essa lógica ou é um incapaz – que não conseguiu adquirir ou fazer uso de um automóvel – ou algum desajustado, pois não gosta de dirigir. As garotas do bar não saem com essa pessoa. Os seus clientes fogem, pois ele não tem nem competência para ter um carro. Os pais sentem-se humilhados, por tanto terem investido no filho que não corresponde às expectativas. Pária social é o que se é quando não se submete a essa lógica do sucesso individual automobilístico. As pessoas sabem disso, e sentem-se obrigadas a entrar no jogo, até por uma questão de sobrevivência. Nos finais de semana, férias, feriados, dão uma escapada nessa vida idiota, e entrevêem, nessas janelas temporais do sistema, um pouquinho de felicidade, representada por uma comunhão um pouco mais profunda com o universo. Os mais corajosos – se as condições gerais permitem – vão trabalhar de bicicleta, mas são poucos. Resumindo, quem pedala o faz para não se sentir alienado do verdadeiro sentido da existência, pedala para resistir à máquina de moer carne que é a sociedade atual. Pedala-se, por que, quando se pedala, deixa-se de ser um número – RG, CPF, cartão de crédito, matrícula no INSS, carteira do plano de saúde, conta bancária, passaporte, senha – e ser um pouco mais gente, um pouco mais humano. Todavia, não é assim que os ciclistas são vistos. Grande parte da sociedade os vê como adultos que permanecem infantis, pois a bicicleta só pode ser um brinquedo. E quando se brinca não se faz nada a sério, não se usa capacete, por exemplo. Talvez por isso, um ciclista que use capacete é respeitado. Respeitado sim, mas ainda um incompreendido (a máxima corrente diz que devemos respeitar os loucos!). O mundo é assim mesmo, dirão alguns. Mas não se sustentará desse modo por muito tempo. Sabe-se que, se os chineses passarem a ter o mesmo consumo de combustíveis à base de hidrocarbonetos (petróleo, por exemplo) per capita que os americanos, não haverá petróleo no mundo para sustentar o consumo da China. E estamos deixando de fora outros países populosos, como a Índia. Nós, brasileiros, talvez pelo "complexo de vira-latas" diagnosticado por Nelson Rodrigues, importamos um padrão de transporte totalmente inviável. Se São Paulo tivesse dez vezes mais metrô, seria o melhor dos mundos (a cidade tem o dobro de tamanho de Nova York, e cerca de 10% do metrô deles). Mas não tem. E cada paulistano tem um carro. Apartamentos de quatro quartos são vendidos com quatro vagas na garagem. A lógica da sustentabilidade pelo avesso. Surreal. Aqui a bicicleta deveria impor-se como alternativa séria para o trânsito caótico das grandes cidades. Na Europa o uso da bicicleta é muito difundido: os ingleses usam bicicletas dobráveis, práticas para serem usadas em trechos curtos e médios até as estações de metrô (as Brompton são campeãs em praticidade: confortáveis ao pedalar, capazes de carregar grandes cargas, são dobradas de modo prático e limpo em menos de trinta segundos e ficam compactas o suficiente para serem guardadas debaixo de uma cadeira). As fotos da Amsterdã repleta de bicicletas são clássicas. Os italianos fabricam os melhores bólidos ciclísticos. Mas aqui no Brasil, a bicicleta ainda vai à contramão dessa imensa máquina de lavar cérebros! E o mais engraçado é que, quem mais ganha com o fato de uma pessoa preferir a bicicleta, não é ela, mas é o mundo. Pois ela não queima petróleo, não polui o mundo, não força a procura exagerada de metais em países ricos no subsolo (porém miseráveis na superfície), não dá gastos para o Ministério da Saúde (quem pedala é mais saudável). Quem pedala não tem direito à salvação individual de Santo Agostinho (no céu), nem à salvação individual consumista (na terra), pois ainda é discriminado por preferir a bicicleta. Quem pedala ainda é obrigado a pagar o preço de um Fusca 66 pra comprar uma bicicleta decente. E as mulheres ainda não vêem qualquer glamour nos ciclistas, que ainda são tachados de doidos. E o sistema ainda tenta cooptar o ciclista. É bom que os quadros rachem e que, a cada dois anos, surja uma marcha a mais e não se achem mais peças para a sua bicicleta. Que o pobre porteiro do prédio pague em vinte parcelas aquela bicicleta bonita – com suspensões dianteiras e traseiras – de qualidade, no mínimo, discutível. Resumindo: pedalar, no Brasil, ainda é um ato de resistência. Resistir a ser uma pecinha a mais na máquina, resistir a ser apenas mais um tijolo no muro que isola as pessoas do sentido real e verdadeiro da existência. Resistir a deixar de perceber as belezas e as dores do mundo que nos circunda. Resistir à alienação e ao embotamento. Resistir a se transformar em máquina e tentar permanecer humano."