Tuesday, November 14, 2006

A Bicicleta como Ato de Resistência (por Odir Züge Jr.)

Olá, pessoas
Como meus amigos sabem, em poucos dias vou estrear meu sonho de testar uma vida de ciclonômade, pedalando pelo Brasil por 3 meses. Enquanto isso, para não criar teia de aranha no blog tão novinho, vou publicando textos que se encaixem no contexto de nomadismo. Discussões sobre o nomadismo, semi-nomadismo e pseudo-nomadismo virão em oportunidades futuras, já que é primeiro necessário ter o que escrever, para depois escrever. Lá vai o primeiro texto.

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"Pedalar pode ser um ato de resistência. Essa é a conclusão que chego após ler um texto de filosofia de um amigo, Alysson Leandro B. Mascaro, doutorando em filosofia do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, na qual é professor, bem como na Universidade Mackenzie. O artigo nada fala de bicicletas, mas, de modo direto e conciso, discute o conceito de "justo", do sentimento de justiça que temos: o individual, inaugurado por Santo Agostinho, e o social, desenvolvido por Aristóteles, e esquecido após o renascimento. Explico-me. Para Aristóteles (384-322 a.C.), justiça é "um bem para o outro". Ampliando o entendimento, isto quer dizer que nada posso fazer de justo que prejudique o outro, ou, no caso, os outros, a sociedade. Para Santo Agostinho (354-430), justo é quem Deus "louva". É uma característica inerente à pessoa, independe de seus atos. Calvino desenvolverá o tema, e quem Deus "louva" perceberá isso até por sua prosperidade material – facilmente se chega à total falta de escrúpulos do yuppie que, com orgulho, expõe sua riqueza. Ser rico é bom, danem-se aqueles que não atingiram a riqueza. Não há, portanto, nada de errado em usar um carro que vale milhões e gasta muito combustível, tudo poluindo, quando se é um escolhido de Deus. Esta linha de raciocínio nos é imposta desde criança. A publicidade, inclusive, vende produtos explorando a nossa necessidade de sentirmos que somos pessoas de "sucesso". Fumantes são mostrados como pessoas de sucesso. Carros são vendidos, por meio de publicidade que nos induz a acreditar que dirigi-los é a melhor coisa do mundo: somem os buracos do asfalto, o trânsito, uma bela mulher se sentará no banco de passageiros. Donas de casa que compram a margarina X passam a viver em lares maravilhosos: elas são bonitas, os maridos não possuem barrigas proeminentes, as crianças se comportam bem à mesa naturalmente, sem qualquer desgaste na educação das mesmas... Assim são todas as propagandas. Mesmo os nossos heróis são pessoas que, para atingir o sucesso, pouco fizeram pelos outros. Quando adquirem milhões é que passam a contribuir, aqui e ali, com algumas entidades beneficentes. Ou seja, o "bem para os outros" vem, quando vem, em conseqüência de se ser um justo – e não enquanto pré-requisito para se ser um "justo". É obvio que as coisas não funcionam assim, pois a realidade se impõe, principalmente se estivermos andando de bicicleta. Bicicletas são vulneráveis. Não adianta imaginar que o chão é macio, pois ele não o será quando se cair. Não adianta imaginar que está tudo bem, esquecer os problemas sociais, pois, a qualquer momento, pode-se apresentar um ladrão armado e levar a bicicleta. Depredada natureza, a trilha onde se pedala estará suja, e o pneu furará e rasgará naquele pedaço de lata de sardinha. Não há como se pedalar e permanecer alienado aos fatos que nos circundam. Os motoristas mal-educados e individualistas nem prestam atenção no ciclista, a não ser quando este, junto com a bicicleta, encontra-se debaixo do carro. Além do mais, o ciclista é um estorvo para a lógica individualista do trânsito – que é mero reflexo da lógica individualista do mundo ocidental atual – a lógica de "se matar" gastando pra comprar um carro com a fim de se economizar o esforço físico no transporte. Carro que, na verdade, foi comprado para se "ser alguém" – o "justificado" agostiniano, merecedor de salvação nos céus, ou o "justificado" yuppie, merecedor da salvação terrena. Quem, no mundo moderno, furta-se a essa lógica ou é um incapaz – que não conseguiu adquirir ou fazer uso de um automóvel – ou algum desajustado, pois não gosta de dirigir. As garotas do bar não saem com essa pessoa. Os seus clientes fogem, pois ele não tem nem competência para ter um carro. Os pais sentem-se humilhados, por tanto terem investido no filho que não corresponde às expectativas. Pária social é o que se é quando não se submete a essa lógica do sucesso individual automobilístico. As pessoas sabem disso, e sentem-se obrigadas a entrar no jogo, até por uma questão de sobrevivência. Nos finais de semana, férias, feriados, dão uma escapada nessa vida idiota, e entrevêem, nessas janelas temporais do sistema, um pouquinho de felicidade, representada por uma comunhão um pouco mais profunda com o universo. Os mais corajosos – se as condições gerais permitem – vão trabalhar de bicicleta, mas são poucos. Resumindo, quem pedala o faz para não se sentir alienado do verdadeiro sentido da existência, pedala para resistir à máquina de moer carne que é a sociedade atual. Pedala-se, por que, quando se pedala, deixa-se de ser um número – RG, CPF, cartão de crédito, matrícula no INSS, carteira do plano de saúde, conta bancária, passaporte, senha – e ser um pouco mais gente, um pouco mais humano. Todavia, não é assim que os ciclistas são vistos. Grande parte da sociedade os vê como adultos que permanecem infantis, pois a bicicleta só pode ser um brinquedo. E quando se brinca não se faz nada a sério, não se usa capacete, por exemplo. Talvez por isso, um ciclista que use capacete é respeitado. Respeitado sim, mas ainda um incompreendido (a máxima corrente diz que devemos respeitar os loucos!). O mundo é assim mesmo, dirão alguns. Mas não se sustentará desse modo por muito tempo. Sabe-se que, se os chineses passarem a ter o mesmo consumo de combustíveis à base de hidrocarbonetos (petróleo, por exemplo) per capita que os americanos, não haverá petróleo no mundo para sustentar o consumo da China. E estamos deixando de fora outros países populosos, como a Índia. Nós, brasileiros, talvez pelo "complexo de vira-latas" diagnosticado por Nelson Rodrigues, importamos um padrão de transporte totalmente inviável. Se São Paulo tivesse dez vezes mais metrô, seria o melhor dos mundos (a cidade tem o dobro de tamanho de Nova York, e cerca de 10% do metrô deles). Mas não tem. E cada paulistano tem um carro. Apartamentos de quatro quartos são vendidos com quatro vagas na garagem. A lógica da sustentabilidade pelo avesso. Surreal. Aqui a bicicleta deveria impor-se como alternativa séria para o trânsito caótico das grandes cidades. Na Europa o uso da bicicleta é muito difundido: os ingleses usam bicicletas dobráveis, práticas para serem usadas em trechos curtos e médios até as estações de metrô (as Brompton são campeãs em praticidade: confortáveis ao pedalar, capazes de carregar grandes cargas, são dobradas de modo prático e limpo em menos de trinta segundos e ficam compactas o suficiente para serem guardadas debaixo de uma cadeira). As fotos da Amsterdã repleta de bicicletas são clássicas. Os italianos fabricam os melhores bólidos ciclísticos. Mas aqui no Brasil, a bicicleta ainda vai à contramão dessa imensa máquina de lavar cérebros! E o mais engraçado é que, quem mais ganha com o fato de uma pessoa preferir a bicicleta, não é ela, mas é o mundo. Pois ela não queima petróleo, não polui o mundo, não força a procura exagerada de metais em países ricos no subsolo (porém miseráveis na superfície), não dá gastos para o Ministério da Saúde (quem pedala é mais saudável). Quem pedala não tem direito à salvação individual de Santo Agostinho (no céu), nem à salvação individual consumista (na terra), pois ainda é discriminado por preferir a bicicleta. Quem pedala ainda é obrigado a pagar o preço de um Fusca 66 pra comprar uma bicicleta decente. E as mulheres ainda não vêem qualquer glamour nos ciclistas, que ainda são tachados de doidos. E o sistema ainda tenta cooptar o ciclista. É bom que os quadros rachem e que, a cada dois anos, surja uma marcha a mais e não se achem mais peças para a sua bicicleta. Que o pobre porteiro do prédio pague em vinte parcelas aquela bicicleta bonita – com suspensões dianteiras e traseiras – de qualidade, no mínimo, discutível. Resumindo: pedalar, no Brasil, ainda é um ato de resistência. Resistir a ser uma pecinha a mais na máquina, resistir a ser apenas mais um tijolo no muro que isola as pessoas do sentido real e verdadeiro da existência. Resistir a deixar de perceber as belezas e as dores do mundo que nos circunda. Resistir à alienação e ao embotamento. Resistir a se transformar em máquina e tentar permanecer humano."

3 comments:

Varda said...

Faz muito sentido, e viva a resistência !!

Anonymous said...

Nada como pedalar e esquecer da vida.
O problema é esquecer que alguns podem estar sofrendo por sua irresponsabilidade e falta de vontade de pagar as contas Sr. Odir.

Anonymous said...

Obrigado por Blog intiresny