Tuesday, November 14, 2006

Nômades, Exilados e Cidades

Este texto fala do nomadismo e das ferrovias, mas se aplica, guardadas as diferenças, a qualquer forma de nomadismo. Foi extraído da revista Risco e está disponível em <www.eesc.usp.br/sap/revista_risco/Risco1-pdf/art2_risco1.pdf>.
Abaixo, seguem trechos que achei os melhores:


"Nômades e nomadismo são conceitos que dizem respeito a uma forma de territorialidade específica,caracterizada pela mobilidade e dispersão geográfica e que se realiza sob o princípio da errância, o que é –como bem lembram os situacionistas – totalmente distinto da viagem turística. A viagem para o nômade é o tempo da plenitude de sua territorialidade. Paraele, seu acampamento é sempre provisório, um lugar prestes a ser abandonado. Assim, quanto mais forteo nomadismo de um certo grupo cultural, menor seu tempo de permanência em um acampamento.Tal fato confere apenas aos territórios por onde realiza sua deriva – sejam eles desertos de gelo ou de areia, atravessados por esquimós ou beduínos, ou então florestas ou estepes, percorridos pelos últimos yanomamis ou românis – o espaço peculiar que dá sentido pleno à sua territorialidade."

"Recordemos aqui, mais uma vez, Thoreau, em um pequeno trecho de seu diário, um breve ensaiointitulado “Walking”, datado de 1862, em que comenta uma das formas de nomadismo. Lemos aí sobre a arte do caminhante e sobre
“quem tem o gênio para sauntering , cuja palavra é magnificamente derivada ‘de um povo preguiçoso que andava pelo campo, na Idade Média, esmolando, sob o pretexto de ir à Sainte Terre ’, isto é, à Terra Santa. (...) Aqueles que nunca foram à Terra Santa em suas caminhadas, como pretendiam, são, de fato, meros preguiçosos e vagabundos; mas são saunterers no bom sentido, como eu assim entendo. Alguns, entretanto, derivam a palavra de sans terre ,sem terra ou sem casa, a qual, entretanto, no bom sentido, significará não ter uma casa em particular,mas, do mesmo modo, estar sempre em casa. Este é o segredo do bem-sucedido andarilho (sauntering). Aquele que permanece todo tempo quieto em uma casa pode ser o mais vagabundo de todos; porém o andarilho, no bom sentido, não é mais vagabundo que o rio com seus meandros, que está todo o tempo persistentemente buscando o caminho mais curto para o mar. Mas eu prefiro a primeira, a qual é, defato, a derivação mais provável. Para todos, caminhar é uma sorte de cruzada, pregada por algum Pedro o Eremita dentro de nós, que nos leva seguir em frente e reconquistar a Terra Santa das mãos dos infiéis.”

"Lembremos aqui também os grupos sociais que adotam formas de nomadismo metropolitano, como ciganos roms, circenses, vagabundos (isto é, pessoas que recusam a ideologia do trabalho, preferindo a precariedade de uma vida errante à submissão de seus corpos e espíritos livres) e mendigos (ao menos no sentido original, daqueles que fizeram a opção pela vida de mendicância). Ainda que com outras formas, a adoção de práticas nômades pode estar também presente em certos grupos sociais tipicamente urbanos – como é o caso dos punks com sua deriva pela metrópole ou dos michês realizando a deriva homossexual pelo centro paulistano."

"A territorialidade nômade opõe-se àterritorialidade sedentária, cujos princípios de fixaçãoe concentração espacial, mas também de confinamentoe esquadrinhamento, promovem a urbanizaçãodo território, isto é, a criação de uma rede de cidadesinterligadas por meios de comunicação. É nessesentido que não é possível concebermos uma cidadefora de uma rede de núcleos urbanos hierarquizados,pois uma cidade isolada é uma cidade morta."

"Vejamos agora as noções de exilados e exílio. Elas remetem a desterro, degredo, expatriação, termos que significam a perda de toda e qualquer territorialidade. É assim que distinguiremos aqui os nômades dos exilados na cidade, embora no que se refira aos modos de sobrevivência de cada um desses grupos encontraremos inúmeras semelhanças. Entretanto, o verdadeiro nômade não reclama qualquer direito de cidadania, já que a cidade é para ele apenas local de passagem, locus transitório em cujos interstícios pode encontrar abrigo provisório e de cujas sobras é possível extrair algum alimento. Por ter cultura própria, que se opõe radicalmente à culturaurbana, o nômade verá a cidade apenas como fonte de algum benefício a ser aproveitado, mas jamais como um direito que lhe está sendo negado. No caso das sociedades “primitivas”, se aceitamos a formulação de Pierre Clastres (1990) de que são sociedades contra o Estado, podemos afirmar que o nomadismo é uma das formas de sociabilidade inventada por tais sociedades para impedir o aparecimento do Estado, enquanto a cidade é o modo peculiar de o Estado se manifestar no território. Sociedades contra o Estado, os caçadores nômades da floresta são também sociedades contra o urbano. Já o exilado é aquele que perdeu sua cidadania e se ressente dessa falta, clamando pelo territóriodo qual foi expulso. Desse modo, seus acampamentos não constituem uma forma deterritorialidade alternativa, embora possam vir a recriar espaços autônomos que resgatam o sentido originário da rua e da praça. Reproduzem, apesar da precariedade e mobilidade de seus abrigos, o traçado sedentário, adotando quase sempre um desenho que reafirma o esquema urbano tradicional."

"Mas também encontramos outra categoria de exilados nas metrópoles contemporâneas. Aquela dos que se auto-exilam, como os que freqüentam shoppings centers – usinas de uma sociabilidade confinada e artificializada em uma arquitetura sintética –, ou os que habitam condomínios fechados ou casas amuralhadas com grades e guaritas, à maneira dos presídios. Para muitos, é claro, o autoexílio é imposto. Pensar a cidade talvez não seja possível sem concebermos sua muralha, mesmo quando esta é invisível. De qualquer modo, a concepção de enclaves na cidade já está presente nos primeiros subúrbios-jardins erguidos naInglaterra com muros e portões delimitando as fronteiras de um modo de vida comunitário, que pretendia ser uma alternativa à metrópole, como Hampstead, próximo a Londres, construído em 1907."

"As metrópoles e grandes cidades contemporâneas são atravessadas por fluxos diversos, que se ampliam progressivamente em decorrência da expansão dos novos meios tecnológicos de comunicação e transporte. Em especial o fluxo de idéias nunca alcançou velocidades de intercâmbio e difusão tão grandes como nos dias de hoje. Os nômades também navegam por essas ondas, incorporando as novas ferramentas segundo seus interesses. Como fizeram com os trens, fazem hoje via internet, a última rede construída pelo capital. Se aos nômades nada mais resta que as últimas formas de uma cultura exilada, aos exilados sobra apenas a luta pelo direito à cidade, e para ambos a esperança de uma cidade sem muralhas, de estações sem catracas e composições sem fiscais."

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