Thursday, January 11, 2007

Dia 38 - Itaúna, MG - 2.540km (3) (em construção)

Caros colegas

Finalmente cheguei ao meu destino final, onde a ciclista e internauta Gilvana me conseguiu um tempo de descanso e convívio com muitos ciclistas. Basta dizer que estou alojado na casa do dono da maior loja de bicicletas de Itaúna, o que não representa muito em termos absolutos, é verdade, mas é suficiente para me pôr em contato com os tão sonhados viciadinhos em trilhas, e aqui há muitos viciadinhos - e muitas trilhas.

Saindo da LAN de Paraisópolis depois de pagar mísero um real por hora, fui procurar lugar pra jantar. Como já estava escuro e chovia, os restaurantes estavam todos fechados, então me recomendaram um dos trailers (que não são trailers, quiosques de madeira) que ficam ao redor da praça central (que por sua vez é acompanhada da inevitável igreja matriz), uma praça bem simpática e com várias pessoas ainda na rua. Ao começar a perguntar pro rapaz quais eram as opções, uma rápida passagem de olhos sobre o cardápio na parede interrompeu minha pergunta, substituindo-a pela escolha óbvia: XIS TUDO! Depois de algum tempo de preparo, veio o tal xis. Já notei, como era esperado, que o diâmetro dos xises por aqui é menor do que no Rio Grande, mas em compensação a espessura é avantajada, a salada é sempre fresquinha (nada de coisas murchas escorrendo caldinhos suspeitos), e o sabor é muito bom. Acompanhei o xis de uma lata de Caldo Preto, e fui tentar nanar. Pra minha surpresa, o hotel apesar de espeluncóide, era tranqüilo, e pude dormir bem.

No dia seguinte, como sempre, saí do quarto já perto da hora limite do café da manhã, e me aguardava uma copa tão precária quanto o banheiro, com mesas e cadeiras, uma térmica gigante com café, pão, margarina (dentro do pote de meio quilo, mesmo), leite, açúcar e era isso. Enquanto tomava café, apareceu um senhor que havia me emprestado o sabonete no dia anterior, que aliás morava no hotel (seu quarto era repleto de troféus, provavelmente de futebol ou esnuque, digo, snooker). Ele me cumprimentou, foi entrando na cozinha, pegando o que precisava, se serviu rapidamente, e enquanto ainda engolia os goles de café já foi lavando seu copo na pia. Ele saiu, e logo ouvi alguém que parecia estar morrendo para subir as escadas, era um senhor bem velho, provavelmente com insuficiência cardíaca, eu acenei para ele, mas ele não respondeu. Seguiu tropegamente para a mesa do café, se serviu, eu lhe disse "estou com a margarina aqui, se o senhor quiser" e ele me olhou, com uma expressão que misturava surpresa e reprovação por eu existir e estar ali naquele momento, e continuou se servindo com a mão trêmula, porém sem derramar ou derrubar nada. É cada cena que se vê nessas viagens.
Terminei de me arrumar, vesti e calcei as roupas ainda bastante úmidas, e fui me dirigindo para a estrada. Saindo dali, já peguei uma longa subida, e seguindo adiante logo em seguida longas e velozes descidas de mais de 70 por hora. A estrada não possuía acostamento, mas também tinha pouco movimento, e eu pude exercitar meu novo passatempo da viagem: cantar, bem alto, já que minha voz não é das melhores e para alcançar as notas mais agudas eu tenho que cantar muito alto. Para terem uma idéia, meu repertório incluía Elis Regina.
Indo assim, sobe, desce, trocando muitas marchas, sem pressa, cheguei a Conceição do Ouro. Ali, a estrada corta a cidade, e o piso é de paralelepípedo, portanto fui muito lentamente por causa da trepidação causada pelos pneus cheios, usando a calçada quando possível. A cidade também é simpática, sendo o canteiro central da avenida decorado com belas palmeiras, não muito altas mas bem encorpadinhas (bem ao estilo das moças daqui). Mais algum tempo descendo e saí novamente na estrada. Ao passar por um trecho com um pouco de terra na estrada (provavelmente decorrente de alguma enxurrada), vi que havia um motociclista me seguindo a uma distância de uns 40 metros. Achei muito estranho, mas logo ele acelerou, passou ao meu lado, e seguiu viagem. Na verdade, ele estava passando em um trecho com lama úmida, e não queria sujar a roupa de domingo. Nada como a paranóia urbanóide.


A estrada continuava, passando também por Cachoeira de Minas, outra cidade pequena, saindo depois em uma outra estrada que seguia para o oeste, até sair na rodovia Fernão Dias, que me levaria mais rapidamente para o norte. Minha meta era seguir por ela até Careaçu, o que já me daria uma distância boa no dia. Fui indo, agora já pedalando com um amplo acostamento. Estranhei um pouco o movimento e a constante presença de andarilhos naquele trecho. Andarilhos são pessoas que por alguma razão (desajuste social, mental, alcoolismo, etc.) botam uma bolsa nas costas (geralmente não é uma mochila bonitinha) e saem por aí. Não sei onde essa gente dorme ou come, mas o fato é que há dúzias deles por aí, e parece que eles combinaram para se caracterizar todos da mesma maneira, roupas, calçados, e a bolsa, que às vezes é um saco de ração apenas. O vento estava um pouco contra, e haviam muitas nuvens de chuva ao longe, felizmente naqueles lugares de relevo ondulado se pode enxergar muito longe em quase todas as direções, apreciando várias texturas de nuvens, desde os retalhos ao longe, recortando pedaços de céu azul, com bordas brilhantes, passando por nuvens de um lilás profundo com gomos ascendentes, meio translúcidas e obviamente carregando muita água, até manchas brancas semelhantes a cortinas unindo homogeneamente o céu ao chão, nos pontos onde a chuva de fato estava caindo de verdade.
Em determinado momento, já com algumas dezenas de quilômetros rodados, parei em uma churrascaria que estava lotada, o que me obrigou a contrariadamente cruzar a pista para a churrascaria do outro lado da estrada, que por sua vez estava fechada. O jeito foi ficar mesmo na lancheria (ou lanchonete, como dizem aqui), onde comi algo muito semelhante ao Xis Tudo, muito saboroso, acompanhado de um refresco de guaraná com ginseng (a criatividade é o limite). Almocei em umas mesas na rua, na sobra e na brisa. À minha frente, entre a lanchonete e a pista de abastecimento do posto de gasolina, uma placa presa na grade de um lago, aparentemente um pesqueiro (pesque e pague, se preferirem), dizendo "este posto é um exemplo de como podemos preservar o ambiente: a poucos metros deste tanques de peixes, se encontram tanques de combustível". Houve um momento em que não pude seguir lendo a placa, pois um funcionário do posto despejava, com uma mangueira, litros de água potável sobre a ampla superfície de cimento impermeável do local, outro exemplo ímpar de tratamento esperto dos recursos naturais. Para que serviu isso, provavelmente nem ele saiba...

Barba esdrúxula? Não... Apenas reflexo do cabelo!
Segui viagem e em não muito tempo, entre as ondulações suaves da estrada, passei por Careaçu. Casualmente, aquela região do sul de Minas é a mais afetada pelas cheias da região, e em todas as cidades por onde passei há desabrigados, mortos, desaparecidos, estado de emergência e calamidade, etc. Isso eu sei porque é o que ouvi no jornal. Da estrada, sem procurar muito, o que pude ver foram rios obviamente transbordados em vários pontos, pastos alagados, cercas das quais só se podia ver o topo dos mourões, e uma quantidade impossível de lagos por toda a parte.
Em Careaçu mesmo, havia um desses lagos, abaixo de cuja superfície deviam provavelmente estar algumas estradas e plantações. Como passei lá meio cedo, segui adiante, para minha meta final do dia, São Gonçalo do Sapucaí.
Chegando perto da cidade, o GPS apontava bem para a esquerda, e depois de contornar um trevo (no qual fiz uma foto malandra do pré-pôr-do-sol entre nuvens brilhantes), peguei uma longa subida, depois uma íngreme descida, até chegar ao posto da polícia, um bom local para pedir informações, pensei.


Me indicaram o Hotel São Luis, o qual ficava lá no centro da cidade. No hotel, me hospedei em um quarto muito longe da rua, no segundo andar, que ficava ao final de um intrincado labirinto de corredores estreitos e salas com sofás velhos. Para subir as escadas, o velho malabarismo de sempre com a bici cheia de peso. Lá em cima, tomei banho, lavei roupas, o quarto era aconchegante, com televisão, duas camas e uma areazinha de serviço com vista para a rua dos fundos (precisava botar a cabeça por cima do murinho). Fiquei um tempo lá, vendo TV, descansando, olhando mapas e fazendo planos. Mais tarde, desci e perguntei ao dono do hotel onde eu poderia jantar bem. Ele me indicou uma pizzaria que ficava em uma rua um pouco menos movimentada, mas era até uma pizzaria bem legal. O nome se não me engano era Casarão Pizzaria. Ao entrar, pedi o cardápio a um guri que atendia lá, e ele me levou ao balcão, pedindo a uma moça que me mostrasse o cardápio, mas ela estava ocupada. Reparei entretanto, que era uma bela moça, bela mesmo. Fiquei lá olhando o cardápio, e logo ela retornou. Ao menos entre as pessoas que conversei até então, nesta viagem, creio que possa afirmar corretamente que ela era a menina mais bonita até agora. Tinha um rosto parecido com o da caixa da Sorveteria Jóia (Porto Alegre-RS), mas tinha uns 17 ou 18 anos, e era mil vezes mais encantadora, cabelos pretos longos, ondulados e perfumados, sorriso hipnótico, olhar meigo, expressão tímida, voz suave... Fiquei ali uns cinco minutos fazendo perguntas sobre opções de cardápio, se dava pra fazer meia porção de filé, se dava pra colocar dois sabores na pizza, ou três sabores, se eu escolhesse um ou outro sabor de preços diferentes, que preço ficaria no final, se o suco de laranja era natural ou era polpa, um pouco porque realmente estava indeciso, mas também porque a beleza e o charme da moça realmente mereciam ser apreciados. Pedi a pizza, que veio realmente farta e gostosa (ao menos enquanto quente), e um suco de laranja. Da pizza comi a metade, e agora vão rir da minha cara, dizer que eu sou um pato, mas eu não tou nem aí. Pedi para embrulhar o restante, e enquanto pagava no caixa (pagava à moça em questão, que eu provavelmente nunca mais vou ver, e cujo nome eu nunca vou sequer saber), lhe entreguei uma flor de origami, feita com um guardanapo, e disse "eu sou do Rio Grande do Sul, estou viajando (nem falei que era de bici...) pelo Brasil, e posso te falar que existe muita mulher bonita neste país, mas bonita que nem tu é muito difícil encontrar, por isso eu fiz essa flor pra te deixar de lembrança" (dããããã, na frente até dos outros funcionários, meio gaguejando, que quadro...). Ela agradeceu, disse "volte sempre", eu disse que provavelmente ia demorar uns anos, me despedi, pequei meu pacote sem olhar muito pros lados, e saí. É amigos, não são só as pernas que devemos exercitar em uma viagem, o platonismo adolescente ainda existe. De volta ao hotel, terminei de assistir o Fanático Show da Vida e nanei com a lembrança da bela moça.

Dia seguinte, já com o clima de pseudo-romantismo de volta ao normal, como era de se esperar, cumpri toda a rotina de juntar a tralha (com destaque para as manobras de guiar a bicicleta com alforjes, de ré, por entre um intrincado labirinto de estreitos corredores e salas com sofás velhos), tomar café, e deitar o cabelo, que por falar nisso já está beeem grande. Ao subir a íngreme rampa em direção à Fernão Dias, um rapazinho numa bicicleta sem marchas, com uma daquelas caixas no bagageiro, me acompanhou, e fomos conversando, eu contando pra ele sobre a viagem e respondendo às perguntas típicas (quantos km por dia, se eu não cansava, nossa, deve ser bão demais...). No topo da subida, deixei ele para trás, embalando descida abaixo e saindo na estrada, lá embaixo. Fui indo, entre nuvens menos carregadas que na véspera, andarilhos esparsos, muitos caminhões, poucos carros, mas como a estrada é pista dupla com acostamento, é até bom que venham muitos caminhões, que ao menos é uma distração, faz vento a favor, e os da outra pista seguidamente abanam e buzinam. Pior os trouxas que vêm no mesmo sentido e tocam aquela corneta bem quando estão do ladinho. Não sei se eles fazem por bem ou por mal, mas o susto e o desagrado são grandes, malditos! Parei em um posto para almoçar, e ali comi arroz com costela de porco, feijão mexido, algo parecido com caneloni de presunto e queijo, costela na panela com bastante gordura, e outras coisas light. Para sobremesa, um picolé de coco. Para completar, algumas balas de café, para ajudar a preencher o vazio da glicose e dos pensamentos durante a longa estrada. E lá vamos nós, de volta ao solzão. Não há muito o que contar sobre esse trecho, exceto que chega uma hora que dói a bunda, doem as mãos, e a cada curva a gente enxerga a estrada lá longe, e tem umas visões que desanimam, como quano a estrada lá longe é bem inclinada, para cima, o que aconteceu muitas e muitas vezes em todo o trecho da Fernão Dias. Sentia naquele pedaço também uma leve dorzinha nas pernas, sinal de cansaço crônico.
Ao me aproximar de Carmo da Cachoeira, meu destino do dia, finalmente o tão sonhado encontro aconteceu: eu, um ciclista cansado e pré-hipertérmico, e um paredão branco chuvoso encimado por uma opulenta nuvem!! A menos de dois quilômetros do hotel, em poucos segundos fui ensopado por uma grossa chuvarada, a ponto de formar uma camada de água sobre o acostamento, mesmo em uma descida. Sapatilhas, luvas, pochete, capacete, tudo enxarcou-se também. Foi divertido. Contornei o trevo de acesso, sob a rodovia, onde se abrigava uma família inteira, uma senhora e umas seis crianças, negras, olhando pra mim com aquela cara, os olhos arregalados, entre encanto e espanto. Reprimi com certo sentimento de perda meu espírito Sebastião Salgado, já que tirar a máquina da pochete molhada e constranger a potencialmente assustada família a posar para um barbudo sem camisa seria querer demais. Ficou na memória...
Ainda tive de subir uma íngreme mas curta rampa até a cidade, o que foi bom, pois eu estava ficando com frio. Foi fácil escolher a Pousada Mansur, no centro da cidade, que merece um destaque: quarto com duas camas, limpo, silencioso, com banheiro, televisão e café da manhã por DEZESSEIS REAIS!! Recorde de custo benefício, tanto que é dos poucos que eu comentei valores. Tomei banho de roupa, durante o qual lavei tudo, inclusive sapatilha. Deitei depois disso na cama, com uma moleza absurda, dor nas coxas, e freqüência cardíaca um pouco alta, bem sinal de cansaço crônico, mesmo. Apesar de eu estar torcendo para chegar a Itaúna logo, percebi que deveria dividir os duzentos e poucos quilômetro que faltavam em três dias, ou quem sabe até aproveitar o hotel bom e barato para tirar um dia de folga. Era evidente que no dia seguinte eu estaria podre.
Depois de um tempinho, fui na lan só pra ver os emeios e deixar scraps estratégicos, fazer um lanche e dormir. Ao me ver sair, o senhor do hotel (que não foi quem me recebeu) comentou "você que é o ciclista? tem outro rapaz aqui no hotel que também tá viajando de bicicleta, indo pra Belo Horizonte, ele disse que quer falar com você depois". Nossa, seria bom demais para ser verdade, já pensou um cara pra me acompanhar uns pedaços, tocar uma idéia, dividir vácuo, e ainda por cima assim, sem combinar, por puro acaso! De fato, fui numa sorveteria, para dar uma amansada na hipoglicemia e na sede, depois na lan, onde fiquei uma hora e pouco, terminando de decorar as músicas da Elis Regina para cantar direitinho na estrada, depois de volta à sorveteria, onde comi uma surpreendentemente gostosa e satisfatória torrada com bastante tomate, e voltei para o hotel. Chegando à recepção, me indicaram que o ciclista estava no quarto quinze (o meu era o treze, do lado).
Bati no quarto e ele logo abriu. O quarto era menor que o meu, mas estava coalhado de coisas estendidas, roupas, ferramentas, sacolas, mapa, barras energéticas, e a má notícia para mim: uma reluzente speed GTS, até aqueles apoios de guidão usados em triathlon o cara tinha. Bagageiro, só pra levar uma necessaire. Me apresentei então para o Edilson, que mora em São Paulo, um cara muito simpático, com pinta de corredor de maratona. Trocamos umas palavras, e logo desisti de acompanhar o cara, que vinha fazendo mais de 150km POR DIA!! Pretendia ir de São Paulo até o interior da Bahia, por isso estava correndo para aproveitar bem as férias. Fizemos algumas fotos no saguão do hotel, mas como ele queria acordar antes do nascer do sol, fomos dormir cedo. Eu ainda fiquei assistindo uns pedaços do filme do Matt Damon, mas desliguei antes do fim do filme, pra ver se conseguia otimizar o necessário descanso.


Pessoal, esta postagem será editada, pois não consegui escrever tudo. Contarei como foi minha recuperação recorde, fazendo 137km na terça, quando escapei de uma chuvarada já na porta do hotel em Carmópolis, e fazendo mais 80km na quarta, pegando várias caronas em caminhão nas subidas e chegando em Itaúna antes das três da tarde. Agora, vou passear com minha anfitrioa. Abraços a todos e beijos às meninas!

Nuvens negras chegando em Carmópolis

3 comments:

Anonymous said...

ô meu velho! exercitando cânticos, isso é bom hein, estamos precisando de vocalista, tópas?

Abração, Gonzalo.

Anonymous said...

Cara, esta sua jornada está realmente um show. Isso aí dá um livro tranqüilamente, você escreve bem, e tem umas fotos MUITO legais. Acho que você deveria disponibilizar uma conta pra depósito de colaborações e patrocínios, tenho certeza de que tem gente por aí querendo participar dessa sua aventura.

Abraço e boa sorte

FarAmiR said...

Ô guri, a viagem "foi indo, foi indo", como você mesmo escreveu, e ainda com florzinha de origami..

E a volta? Vai passar por cá, Erechim, Alturuguay? Avise!!

Abraço, te cuide