Wednesday, January 24, 2007

Dia 51 - Passos, MG - 3.120km (0)

E aí, Galera Fiquei uma semana longe de computadores, por ter tomado um fartão em Itaúna, onde eu ia à LAN diariamente, e por ter passado pela Serra da Canastra, uma região onde não tem internet (e um monte de outras coisas, também) e onde o ciclista fica bem cansado. Me surpreendi com a quantidade de pedidos emocionados para que eu postasse mais relatos, pedidos feitos por gente que eu nem conhecia, chegaram a citar O Pequeno Príncipe, de Exupéry, para me convencer de que agora não tenho mais o direito de deixar meus leitores a ver navios. Portanto, vou aproveitar o dia de descanso (estou cansado, e me deu uma assadura no saco que detalharei mais adiante) para escrever, e muito, e com detalhes, que afinal é, imagino, a melhor forma de retribuir o apoio e o interesse de todos vocês nessa minha viagem. Para isso, já almocei dois pratinhos de lasanha com ensopado de peixe e bife à parmegiana (com palmito), e estou agora comendo balinhas sete-belo e escutando rock progressivo sinfônico no streaming do site http://www.progarchives.com/, que recomendo extremamente aos amantes da boa música.

O dia seguinte à trilha, segunda-feira, foi um dia de descanso, conforme combinado entre eu e o Sérgio, que se dispôs a me acompanhar em outra trilha na terça-feira. Isso significa que acordei apenas a tempo de tomar o café da manhã do hotel, voltar rapidamente para assistir o Bob Esponja, praticamente a única atração decente do programinha palha da Xuxa (pobres crianças de hoje). Saí já perto da hora do almoço, de bicicleta, com a preguiça típica do dia em que se pode fazer qualquer coisa e não se tem nada para fazer. O tempo, como sempre, continuava nublado e mormacento. Queria comer algo mais caprichado, e saí procurando algum restaurante de comida mineira, que a cidade tem aos montes, mas são todos difíceis de achar. Após desistir de achar o "Panela Mineira", cuja placa já havia visto algumas vezes durante os pedais de reconhecimento na cidade, mas não lembrava onde havia sido, acabei indo parar no D'Lécia, que infelizmente só tinha self-service por quilo, o que não costuma ser boa idéia para ciclistas, e para mim definitivamente nunca é. A comida era boa, havendo quiabo, torresmo, carne, feijão e saladinhas. Imediatamente após, fui à América Latina, onde comprei um extensor bem longo que deveria acabar com o problema de sacolejamento dos alforjes. Os pobrezinhos já estão com os ganchinhos de plástico que os prendem ao bagageiro todos esgarçados, e concluí que infelizmente o que realmente funciona não é um design "clean" e soluções malandras de fixação, e sim o bom e velho extensor de R$ 1,50, que a tudo abraça, aperta, firma e sustenta, indiscriminadamente, e independente de cor, textura, peso ou preço. De volta ao hotel, aproveitei para pôr em dia tarefas há muito postas de lado, como cortar as unhas dos pés que já ameaçavam a integridade das meias, e aparar os fios do bigode, que para mastigar pêlos grossos já bastam os que vêm no torresmo. Para isso, utilizei minha fiel ferramenta, companheira de anos: a tesourinha do canivete do extinto Suisscau, uma cópia de miniatura de canivete Victorinox, que uso para recortar os remendos Vipal (uso aqueles remendos em rolo, não sei por que acho melhor que os estrelinhas).Após essas amenidades, me senti um tanto solitário, e resolvi que sairia logo da cidade. Como disse, andar com a âncora SOBRE o bagageiro, ao invés de deixá-la no hotel ou na casa de alguém, é algo que vicia (não sei como vai ser jogá-la de volta em minha própria casa!), e assim lá fui eu até a bici, parafusar bagageiro, reposicionar o farol, ajeitar o suporte da bolsa de guidão, dar uma pré-ajeitada nos alforjes. Nesse ínterim, o interfone do quarto tocou, e fui avisado de que o Caneschi estava na portaria me aguardando, conforme o combinado, para irmos tomar um açaí na sorveteria. Ele estava dessa vez, não com a Caravan ou com a Kawasaki, mas com um jipe JPX Montez (taí um cara que gosta de veículos bons), e lá fomos nós, não sem antes passar pelo Giscard, um tatuador que já deixou no próprio Caneschi, tatuadas, a imagem da asa-delta dele, a imagem da falecida cadela dele, a Mafalda (que aliás estampa também a traseira dos caminhões da transportadora dele, que não por acaso também se chama Mafalda), além da clássica e versátil expressão "Amor eterno", no lado esquerdo do peito. O cara lá é bom, vi o álbum dele, e ao comentar que só tatuaria algo relacionado com bicicleta, ele mostrou uma tatuagem que havia feito (mais tarde descobri que o tatuado era o irmão mais novo da Gilvana, também ciclista, é claro): um talho do lado esquerdo da perna, por onde penetrava um pedivela inteiro - e não só a coroa grande!Nos despedimos logo, e fomos, a pedido meu, a uma lanchonete, onde comi o xis filé especial, recomendação do Giscard, que me serviu como janta. Imediatamente após, fomos à sorveteria tomar o tal açaí, outro novo vício, tanto meu quanto do Caneschi. Ficamos ali de trololó, e em seguida veio nos acompanhar a Gilvana, que preferiu tomar um sorvete de maracujá. Papo vai, papo vem, começou a dar frio, a Gilvana tinha de ir embora em seu possante Chevette 74 (mas com classe!), então fui conduzido de volta ao hotel, assisti um pouco de TV e nanei.

O dia seguinte, terça, era o dia de fazer a trilha do visual, com o Sérgio, programa que seria feito à tarde, exceto se as condições do tempo permitissem voar de trike. Na quarta, então, ficaria "de sobreaviso" para voar, e independente de ser ou não bem sucedido, quinta-feira seria o dia de partir de Itaúna. Provoque a sede de levantar âncora até não aguentar mais, hehe.Aproveitei a parte da manhã para ir a uma outra LAN, onde era permitido instalar programas no computador, e instalei o GPS Trackmaker, a partir do qual editei alguns arquivos que achei na internet com trilhas, estradas e pontos úteis na Serra da Canastra, meu próximo destino turístico. Passei esses dados para o GPS, imprimi um mapa esquemático, e fui almoçar. Seguindo recomendação de muita gente, fui ao Maria Formiga, restaurante próximo ao hotel, e comi quiabo, lasanha, carne assada, salada, torresmo... Voltei ao hotel para tirar uma sesta, e depois das três e meia da tarde me dirigi à loja, onde já me aguardava o Sérgio. Saímos pedalando pela cidade, pra variar em um ritmo meio forte, que aquela galera lá não poupa pedal. Mesmo tendo descansado um tanto, não estava me sentindo tão bem quanto no domingo, até porque já havia colocado de volta o bagageiro e o suporte da bolsa de guidão. Logo já estávamos no paralelepípedo, depois na estrada de chão, e começamos a pegar mata-burros, porteiras e trechos de pasto com gado, tendo de tomar cuidado para não escorregar nas bordas argilosas das valetas erodidas. Em alguns pontos, era necessário descer da bici para empurrar, devido à inclinação e à quantidade de pedras que, mesmo não sendo grandes, provocavam desequilíbrio. E a trilha foi indo assim, sempre subindo, suave e constantemente, na maior parte do tempo por entre trilhas de gado. Chegamos a comentar que era bom que não estivesse chovendo ou molhado o chão, pois se assim fosse os escorregões e o ski-bunda seriam inevitáveis. Após outra porteira, a trilha ficou mais fechada, com mato dos dois lados, e o caminho tinha apenas um palmo de largura. Havia uma árvore caída para evitar a passagem de motoqueiros, mas já havia também um contorno mal definido em meio à vegetação cheia de galhos e cipozinhos, ao lado da passagem bloqueada. Depois de mais alguns poucos metros, chegamos ao local que dá nome à trilha: uma laje de pedra, comum nesse tipo de morro, que formava uma plataforma que serve como mirante natural, em direção a oeste, e de onde se podia avistar, da esquerda para a direita, as cidades de Carmo do Cajuru, Divinópolis e... uma grossa nuvem de chuva, acompanhada da inevitável cortina branca de chuva, que aparentemente se movia em nossa direção. Tiramos algumas fotos e decidimos nos mandar logo, mas voltamos somente até um pouco depois do desvio pelo mato, quando fomos atingidos pela chuva, inicialmente fraca, engrossando logo depois. Mesmo já tendo sido confirmado vezes sem conta que se esconder da chuva embaixo de árvores não resolve o problema, foi exatamente o que fizemos, e causou certa surpresa o fato de que estava funcionando! É claro, funcionou por cinco minutos, e a chuva não havia diminuído significativamente, de modo que optamos por seguir na chuva mesmo, com todas as conseqüências escorregadias que isso teria. O Sérgio não parava de falar que "a trilha devia estar escorregando igual um quiabo", com seu característico sotaque mineiro. Mesmo assim, o astral estava em alta, e logo descobrimos que o medo do ski-bunda não era de todo justificado, pois a trilha molhada estava segurando bem (vale lembrar: se algum mineiro disser que o carro agarrou na lama, isso significa que ele atolou, ou seja, a lama "agarrou" o carro). Isso significou que descemos empolgadamente, no limite do que a visibilidade precária, as bordas das pedras e o tamanho das valetas permitiam. Tomamos ainda uma outra trilha para voltar, usada por motoqueiros, e vimos mais uma vez por quê os proprietários de roças derrubam árvores para impedir o acesso dos motoqueiros (chamados por alguns de "mocotreiros", sarcasticamente): valetas enormes, várias trilhas paralelas e todas escalavradas e cheias de erosão. Escolhemos a menos pior e fomos, e confesso que me surpreendi positivamente com o desempenho de minha bicicleta, especialmente dos pneus, e de toda a tralha pendurada que interferiu pouco em sua manobrabilidade off-road. Saímos da trilha com a carcaça suja, mas com a alma lavada, como sempre, e seguimos de volta à cidade. Deu para perceber que o Sérgio sentiria falta do novo amigo trilhesco (eu), pois falava insistentemente que havia por lá ainda trilhas muuuuuito melhores, que o ideal seria que eu passasse mais tempo lá, ou então que voltasse logo, que fosse de avião para poder andar mais por lá, que ele gostaria de um dia ir ao Rio Grande do Sul para pedalar por lá também, e essas coisas. Disse a ele que era difícil imaginar um retorno a Itaúna tão breve, por questões de tempo, e disse a ele também que não se preocupasse, pois ele ainda era jovem, e quando a gente envelhece os conceitos de distância, proximidade, custo e "muito tempo" se relativizam bastante. Mesmo assim, também lamentei não poder ficar mais tempo para fazer mais trilhas por lá.
De volta ao centro da cidade, já sem chuva, me despedi do Sérgio, após lavar a bicicleta no posto de gasolina (ele preferiu não lavar) e achar uma lanchonete para lanchar. Comi uma coxinha e dois sucos de pêssego em lata, e fui para o hotel, onde tomei banho. Na hora da janta, resolvi inovar, indo ao Bar do Peixe, perto do hotel, e comi um PF que veio muito fartamente servido, embora meio caro. Tomei também dois enormes sucos de manga, feitos com polpa, pois geralmente depois do pedal a sede acaba sendo maior que a fome. E esse foi meu último dia de trilha em Itaúna.

Quarta-feira, o plano era ratear de manhã, e tentar voar à tarde, sem muita esperança, pois além do tempo bom, era necessário que o Caneschi estivesse com tempo livre, o que nem sempre era possível. Aproveitei a recém descoberta LAN para mandar todas as novas fotos para o álbum, cujo link nesta página não funciona. O link correto é este: www.flickr.com/photos/heltonbiker , clica aí! O site é bom porque disponibiliza um programinha, o Uploader, que manda as fotos automaticamente, facilitando muito a vida. Feito isso, fui almoçar no Sandoval, por ser a opção mais próxima e econômica. Após o almoço, liguei para o Caneschi, e infelizmente fiquei sabendo que não seria dessa vez que iria descobrir por quê os passaros voam... Paciência, valeu a intenção, e ao menos o açaí de cada noite era algo com o qual eu ainda poderia contar. Fui então ao hotel, e fiquei lá dando um tempo, até que resolvi sair e dar uma volta de bici pela cidade. Escolhi a prainha, onde procurei algum lugar para fazer um lanche. Depois de ir e voltar uma vez e meia, parei em um bar lá que era o único aberto. Vi com espanto que as lojas por aqui fecham muito cedo, e os bares não ficam abertos o dia todo, abrindo depois que as lojas fecham, o que dificulda bastante a logística de quem não está acostumado com isso. O bar onde parei era dos poucos que estava aberto àquela hora, e pedi um prato típico por aqui: bola de carne, que vem a ser a conhecida almôndega, acompanhada de molho, farinha e catchup. Enquanto comia, fiquei apreciando o movimento de beldades que passava esporadicamente pela calçada e pelo calçadão formado pelo canteiro central da avenida (aqui também não é calçada, é passeio). Já semi-alimentado (ô, saco sem fundo!) resolvi fazer um pré-aquecimento para o dia seguinte, pegando um trecho de estrada na direção de Divinópolis. Antes, passei no posto de gasolina para dar uma calibrada nos pneus, e lá fui eu. Vale lembrar que eu estava sem luva, sem sapatilha, sem capacete, e como o sol estava de frente e já meio baixo, tirei também a camisa, para bronzear um pouco o peito branquelo. A estrada logo que sai de Itaúna está meio ruim para ciclista, com muito movimento de caminhões e carros, pouco acostamento e bastante capim alto crescendo para dentro da pista, diminuindo a visibilidade nas curvas. Há também muitas subidas e descidas por ali. Determinei que pedalaria por meia hora depois daria volta, mas preferi encurtar o passeio antes disso, o que se mostrou uma boa idéia, pois logo depois percebi que a razão do bamboleio que vinha sentindo não era a pedalada quadrada e nem ondulações do asfalto: minha mania de andar sem a tampinha do ventil fez com que sujeira ficasse acumulada na válvula, e após a calibrada no posto a válvula ficou com um vazamento microscópico, porém suficiente para me impedir de seguir pedalando. Como eu estava com meu traje "casual", além de não ter sapatilha, luva e capacete, obviamente não tinha bomba também. Obviamente, isso significou ter que empurrar a bici por mais de cinco quilômetros até a entrada da cidade. Obviamente, isso me deixou com raiva de mim mesmo, mas é bom para aprender que não basta ter pneus à prova de furos se a gente é ratão. De volta à cidade, já suado, cansado e com fome de novo, fui ao posto, calibrei decentemente o pneu, testando a válvula com um cuspe, e vendo que essa não apresentava vazamento dessa vez. Satisfeito com o resultado, e ainda com tempo sobrando, fui à quadra sintética, aquela onde houve a partida de futebol feminino na semana anterior, e comi mais um belo prato de espaguete à bolonhesa com queijo ralado, milho e maionese, um prato bem substancial pela bagatela de R$ 2,80 (sim, dois e oitenta!). Imediatamente após devorar o prato, fui até a sorveteria onde tem o açaí, e àquela hora sim, a prainha já estava bastante movimentada, com muitas meninas bonitas (devia haver homens também, mas não reparei) circulando para lá e para cá com suas roupas justinhas apropriadas à atividade física. A sorveteria estava igualmente cheia, e tive de pegar uma mesa mais afastada, na rua. Pedi o açaí de 500ml com rodelas de banana e castanha moída, e fiquei ali, comendo, lentamente para não doer a goela por causa do frio. Ao terminar, satisfeito, paguei no caixa e subi na bicicleta para ir ao hotel, quando ouço alguém chamar meu nome. Olho para trás e está o Caneschi, sorridente como sempre, descendo de seu jipe, acompanhado de uma amiga, para comer sua dose diária de açaí. Desci da bici e voltei à mesa, para bater um papo. Logo em seguida, chegou a Gil, e ficamos ali conversando. Ver o Caneschi comendo a deliciosa massa púrpura me levou a pedir mais uma dose, dessa vez de 300ml (me arrependi depois, quando essa acabou, devia ter pedido de 500 de novo... sério!). Não muito depois, chegou o Sérigio, que havia dado sua corrida vespertina já. Ficamos ali conversando, e foi quando aproveitei para fazer algumas fotos da turma reunida. Como no dia anterior, logo todos tiveram de seguir seus rumos, e fui pedalando ao hotel, tomei banho, assisti um pouco de TV, e nanei, que no dia seguinte haveria uma âncora no bagageiro para carregar.

Quinta-feira o despertador tocou cedo, mas a preguiça me levou a não sair tão cedo assim. O dia estava bonito, com bastante sol. Tomei o café e saí, sacolejando um pouco nos trilhos do trem e nas irregularidades do asfalto, embora já notando o efeito decisivo do extensor em volta dos alforjes, e desviando dos apressados e nada solidários motoristas, até ganhar a estrada novamente, indignado por ter achado finalmente o Panela Mineira, na saída da cidade, agora tarde demais (ou cedo demais para almoçar, hehe). Àquela hora, felizmente, o movimento de caminhões era bem menor que na véspera, e o pneu não havia murchado mais, de modo que o trauma foi vencido (temporariamente, mal sabia eu). Logo na saída, tem uma ponte por cima das comportas de uma pequena represa, algo bem interessante, ainda mais devido ao forte barulho de água devido à cheia do rio. A estrada depois daquele trecho que eu já conhecia melhorava bastante, ficando naquele longo sobe e desce com várias baixadas em reta, e acostamento suficiente para andar com toda a segurança. Antes de Divinópolis, parei para tomar dois sucos de pêssego com coxinha, que o dia estava quente e a hidratação é importante, assim como a alimentação nada light. Levei uns dez quilômetros para cruzar o perímetro urbano de Divinópolis, que parece ser uma cidade bem grande. Logo depois de passar por ali, onde fui cumprimentado rapidamente por um ciclista que me alcançara na estrada, fui cumprimentado por OUTRO ciclista que também me alcançara na estrada (assim é fácil, eu todo pesadão...). Ele se chamava Reginaldo, era mais velho que eu, e estava em uma Specialized bem legalzinha. Disse que dava aula de educação física em Itaúna e em Formiga, mas não conhecia nenhuma Gilvana (e aí, Gilvana, tem algum professor Reginaldo?). Ele me deu algumas dicas sobre como é a cidade de Formiga, meu destino do dia, além de dar algumas sugestões sobre as opções de almoço no caminho. Logo ele deu meia-volta, nos despedimos fraternalmente, e eu fui indo, esperando a fome e a canseira horrível se abaterem sobre minha carcaça. Isso aconteceu nas proximidades do Café do Motorista, uma das recomendações do Reginaldo, e foi ali que parei.
O restaurante servia prato feito, e eu pedi o meu com bife de porco, sentando ao ar livre. Para acompanhar, pedi um guaraná 600ml, mas me serviram um de 500ml, pois agora essa era a nova medida que eles estavam mandando. Perguntei se o preço havia baixado, o garçom disse que não, e comecei a considerar muito seriamente que devo diminuir o consumo de refrigerante, não por achar que ele seja ruim, mas para não mais compactuar com essa forma abusiva e mercantilista de obter lucro a partir da sede alheia. Isso não me impediu, entretanto, de pedir OUTRA garrafa de guaraná 500ml. Realmente, a sede transtorna as pessoas. Não consegui comer todo o prato, até porque há limite para o tamanho da voracidade de qualquer pessoa, e eu havia comido há não muito tempo. Remei e empurrei o que pude, e depois fiquei com a cabeça encostada na grade, parecendo um náufrago agarrado a uma tábua no meio do mar com sol a pino (eu estava na sombra, porém), com cara de cavalo moribundo. Ao todo, foram duas horas de parada, o dobro do meu intervalo normal de almoço em viagem, mas eu já aprendi faz tempo que temos que ouvir o corpo, e se ele quer ficar parado, fica-se parado, e fim de papo.
É claro que o descanso funcionou, e então de repente me levantei, paguei, escovei os dentes, enchi as garrafas de água e me mandei.
O trecho de estrada que peguei depois disso eu não recordo muito como era, só lembro que tinha sobe e desce constante, sol, pouco movimento de veículos, acostamento bom, e muitas vezes eu desci da bicicleta para empurrar, descansando as pernas e a bunda dormente. Em determinado momento, encostei a bicicleta em um barranco e fiquei sentado à sombra, no acostamento, olhando o movimento. Os motoristas que me viram ali devem ter pensado que eu era louco ou estava passando mal, mas na verdade eu estava muito satisfeito com minha condição marginal, digo, à margem da estrada, na sombra. Quando volto para pegar a bici, vejo consternado que o pneu dianteiro está vazio. Tento encher depois de desembrulhar a bolsa de guidão e pegar a bomba, mas vejo que o furo é ao redor da válvula, fruto garantido dos quilômetros em que empurrei a bici com o pneu vazio, mastigando a câmara. Retiro a roda dianteira com a bicicleta atirada de lado no capim alto, acho o furo ao lado da válvula, numa zona passível de remendo, e prefiro remendar o furo a trocar por uma câmara nova. A tarefa toda não durou muito, e foi bom me envolver em outra atividade, para descansar o corpo de pedalar apenas. Monto tudo, parafuso, guardo, amarro, procuro no chão pra ver se não ficou nada, e me mando, sentindo o pneu firmemente cheio sob minhas mãos, embora não tão cheio quanto antes, por precaução, mas com aquela sensação de que a invulnerabilidade foi definitivamente abolida, e de que dali pra frente a série frustrante de furos me seguiria até o fim da viagem, coisa que obviamente não tinha motivo para acontecer. Não muito depois, tive de parar novamente, por sede, em um povoado à beira da estrada, onde tomei duas garrafas de coca-cola (com minúsculas, em protesto), novamente assumindo a expressão de cavalo moribundo ao olhar para o vazio enquanto a química ianque se infiltrava em minha corrente sangüínea, para meu alívio.
Dali a Formiga não demorou mais muito, e se não me falha a memória cheguei lá abaixo de chuvisco. Parei em um posto antes da entrada da cidade, onde me recomendaram um hotel que fica perto da Faculdade. Desci pela BR, entrei à esquerda para a cidade, subindo uma comprida lomba. Lá de cima, vi a rua onde fica o hotel indicado, mas achei muito afastada de tudo, e preferi seguir até o centro, descendo pela avenida até a praça central, cruzando uma linha de trem (lá o trem também passa constantemente, como em Itaúna, e se bobear é o mesmo trem). Me indicaram alguns hotéis, e acabei escolhendo ao acaso, ficando no Hotel Bandeirante. Foi uma má escolha. O preço até que era bom para um quarto no térreo (sem escadas para carregar a bici) com banheiro e TV, pena que o quarto era pequeno e o banheiro era meio precário, pois o chuveiro só funcionava no inverno. Após o banho, atravessei a rua e jantei numa lanchonete em frente ao hotel. Ao olhar o cardápio, meus olhos pousaram logo no xis tudo, rapidamente indo para o xis tudo especial, e finalmente se acomodando no xis tudo especial super (sério, era esse o nome!), que foi o que pedi, acompanhado de um suco de polpa de manga. Quando veio o tal xis, me espantei com as proporções dele, pois era praticamente esférico, as duas partes do pequeno pão sendo eclipsadas pelo hamburger, presunto, bacon, calabresa, queijo, ovo, abacaxi (!) catupiry e outras frescuras do tipo, que faziam o avantajado sanduíche quase não caber no envelope plástico. Sem hesitar, pedi um prato e talheres, e mandei ver, pedindo mais um suco, dessa vez de morango (suco em lata e em polpa, de morango, é tri; em lata, nunca peça laranja e em polpa, nunca peça pêssego, pois não ficam bons depois do processamento). Fui ao hotel e então descobri por que não foi uma boa escolha. Na portaria, praticamente tive de pedir favor para passar, pois se aglomerava uma jaguarada, falando alto, e com cara de que estavam planejando algum assalto a banco. Da sala de TV provinham mais alguns decibéis de ladainha de botequeiro. Assisti um pouco de TV no quarto, mas quando tentei dormir o som da TV do vizinho (cuja janela dava para o corredor, assim como a minha, e portanto as duas ficavam de frente uma para a outra, e a dele estava aberta), juntamente com a quase interminável conversa de pessoas que iam dum lado pro outro do corredor e ficavam abrindo e fechando portas (dá até pra imaginar que se eu abrisse a porta subitamente veria todos fazendo barulho de propósito à minha volta só para não me deixar dormir...). Quando a zoeira do entra e sai terminou, aí foi a vez da TV do vizinho, com som de explosões, helicópteros, metralhadoras e coisas do tipo. Quando escutei (como não escutaria?) coisas como "no problemo" e "hasta la vista, baby", me dei conta de que se tratava do Exterminador do Futuro 2, e liguei então a TV para ver o filme, de que gosto, já que dormir não conseguiria mesmo. Assisti um pedaço do filme, com mais algum tiroteio (adoro a parte que ele chuta a mesa e aparece no alto do prédio com a metralhadora giratória, detonando os carros da polícia), mas já havia assistido o filme há pouco tempo, então me conformei e tentei dormir apesar de tudo, pois ouvia também os roncos do vizinho do lado e percebi que ele demoraria a abaixar o volume da TV. Em algum momento, peguei no sono.

Acordei na sexta com o despertador, que havia ficado carregando ao lado do ventilador (outra fonte de ruído branco que abafou um pouco a zoeira da TV do vizinho. O café até que era bom, com pão de queijo e tudo, e mais uma vez se confirmou minha recém-criada teoria de que os elementos que perturbam durante a noite nunca aparecem para tomar o café da manhã. Saí pela cidade para ir à LAN pegar o contato do Rodrigo Telles, que em breve me receberia em Franca, já que provavelmente na Serra da Canastra não deve haver muitos pontos de internet. Também aproveitei para comprar dois pares de pilhas, outro artigo precioso para o ciclista gepeéssico e fotográfico que percorre locais ermos e fotogênicos. Voltei ao quarto do hotel, arrumei tudo, e dei uma completada na calibragem do pneu. Ao empurrar a bicicleta para fora do quarto, percebi que ele estava murchando, e não era na válvula (teste do cuspe). Resolvi acabar com aquela palhaçada, paguei rapidamente o hotel, saí, e fui à garagem, onde substituí a câmara por uma nova, além de instalar uma fita de aro nova que trazia comigo (ahá!), e deixar a tampinha da válvula NA válvula... Na saída para a cidade, passei em uma loja e comprei outra câmara Kenda, a única marca que uso, por ser barata e boa. Cortei um pouco a série de perguntas que começaram a me fazer na loja (tenho que melhorar meu humor para conversar com as pessoas, mesmo quando atrasado e com coisas a resolver, isso pode estar prejudicando minha imagem como cicloturista...) e me mandei. Os primeiros trechos da estrada apresentam muitas placas falando da represa de Furnas, do parque Furnastur, pois ali está a represa de Furnas, uma das maiores do país que eu saiba, e a região é conhecida como o Mar de Minas, afinal estamos muuuuito longe do mar. Pelo que deu para entender, antes de ser um piscinão de Ramos, ou apesar disso, lá é um lugar que deve ter dúzias de condomínios, marinas, rampas para barcos e coisas desse tipo. Coisa chique. Com toda a função de tarefas e atrasos, logo senti fome, e parei para almoçar no Estância Gaúcha, onde a comida era mineira, e pude comer coisas leves, como feijão tropeiro, torresmo, banana à milanesa, dobradinha, costela na panela, massa e um suco de laranja. Depois de pagar, aproveitei uma sombra em um canto do enorme estacionamento para tirar uma sesta, me deitando sob as árvores, tentando encaixar os ossos nas concavidades mais confortáveis do piso de paralelepípedo, esperando a comida baixar e o ânimo subir.
O dia estava de fato bastante quente, e eu ia indo, pedalando, vendo se aproximar uma serra bem considerável, embora não pudesse ser a serra da Canastra, e o sobe e desce era constante, pior ainda que a estrada era reta, então ao chegar no topo de uma descida dava para ver lááá longe a enorme e contínua subida. Isso se repetiu algumas vezes, muitas vezes eu empurrei a bici, e a maior dessas baixadas era na cidade de Pimenta, última cidade antes de Piumhi, às margens do lago de uma pequena represa. Ali, parei para tomar um guaraná e encher as garrafas de água, estando com bastante calor. Faltavam ainda uns 15km para o fim do trecho do dia, e quando me senti melhor fui adiante, fazendo força mas andando devagar, acho que pelo calor e pelo cansaço.
Nessa vidinha de sobe e desce, em um certo momento, depois de estar já contornando a serra que estava agora bem próxima (confesso que fiquei com medo ao ver que a estrada seguia diretamente para ela, mas na última hora ela fez uma curva), senti um cheiro característico de uva madura, mas lembrei que ali não tem uva, e imediatamente lembrei que sentira o mesmo cheiro ao passar por uma mangueira alguns dias atrás. Era uma subida, e eu imediatamente freei e olhei em volta, para achar satisfeito uma enorme mangueira, com várias mangas amassadas ao pé da árvore, e mais mangas ainda penduradas nos galhos, a maioria verdes.
Fui até ali, encostei a bicicleta no rodapé da estrada (ou algo que serve como rodapé, enfim), e comecei a busca. No chão, só mangas muito passadas e já roídas de bichos, e na árvore, à primeira vista, só mangas verdes. O trecho da estrada era uma forte lomba com boa visibilidade acima e abaixo, então eu periodicamente tinha de olhar para os dois lados, antes de começar a percorrer a periferia da árvore, procurando possíveis vítimas, e havia algumas. Desenvolvi a óbvia técnica de pegar as mangas caídas que não estivessem muito moles, e atirá-las na árvore, para derrubar as mangas potencialmente maduras (e, sempre, mais algumas que não tinham nada a ver com a história, mas que acabavam virando lanche, ou munição). Rapidamente desisti de manter as mãos limpas, e descobri que é bem fácil descascar a manga a partir da ponta, usando os dentes, como se ela fosse uma banana. Fiapos no dente, ficaram vários. (referência musical: joelho de porco - mardito fiapo de manga "Debaixo daquela mangueira..."). Os motoristas passavam, caminhões voavam, muitas vezes aproveitando a reta e a descida para ultrapassarem-se uns aos outros mutuamente, e eu ali, feliz por estar em um veículo que, apesar de cansativo, me permitia enxergar mangueiras e parar para comer seus frutos. Depois de saciado (não completamente, mas achando que já não valia a pena o esforço adicional), lavei as mãos usando a eficiente técnica de colocar a caramanhola, com o bico puxado, entre os joelhos, apertando com as pernas e aproveitando os pingos. Subi na bicicleta, dei tchau para a mangueira e agradeci, e segui viagem, que Piumhi estava a dez míseros quilômetros, que foram pedalados com a costumeira sofreguidão, diminuída um pouco pelo sol que já estava um pouco mais baixo. Entrei na cidade, e após pedir informação daqui e dali (alguns senhores também começavam a me fazer um monte de perguntas, e teimavam em responder minhas próprias perguntas da maneira dispersa e imprecisa que é característica do pessoal daqui), optei por ficar no hotel Caiçara, uma ótima escolha. Entrei no hotel com aquela cara de "me dá um quarto bom, logo", e fiquei num quarto simples porém espaçoso, com pia, duas camas, e espaço para três bicicletas até. A senhora que me atendeu foi atenciosa, e enquanto me ajeitava para o banho ela ficava circulando cantando e assobiando pelos corredores, que figura. Vi que na sala de TV estava uma morena daquelas que faz a fama de Minas: atirada no sofá de bruços, abraçando um dos braços do sofá, deixando uma das pernas cair quase até o chão, morena, cabelo liso, tipo uma Luisa Brunet mais jovem, mais "fortinha" e mais escura. Só deu alguns desdenhosos olhares em minha direção, enquanto eu preenchia a ficha do hotel, respondendo as perguntas da recepcionista distraidamente. Mulher que sabe que é bonita é fogo.
Fui então tomar o tal banho, que incluiu lavagem de roupas. O sol atingia a janela do banheiro, e deixei a lâmpada desligada, uma das vantagens de se tomar banho de tarde (não sei por que, mas acho que fica um clima mais legal no banheiro com luz natural). Ao sair do longo banho, pude fazer algumas fotos do pôr do sol, a partir da janela do meu próprio quarto. O céu estava bastante limpo, mas havia aquelas nuvens avermelhadas para dar um efeito. Fui à recepção, onde a morena já não estava mais, e me informei com a tia assobiadora da recepção, sobre lugar para jantar. Da sacada do hotel, onde estávamos, vi várias beldades passando, inclusive um triozinho de bicicleta, naqueles trajes típicos de fitness que caem tão bem às meninas. Acabei indo jantar no Bola Branca, um comercial com arroz, feijão, três tipos de salada, bife, batata frita, em quantidades impossíveis de comer tudo. Acompanhando, suco natural de limão. Saí muito satisfeito, e fui ao hotel fazendo um zigue-zague por entre as ruas, vendo se achava algum movimento. Entrei no Hotel com aquela conhecida sensação que provém da certeza de estar perdendo algo, de, apenas por detalhe, não saber onde fica o local secreto onde todas as gatinhas da cidade se reúnem para tomar suco natural e ficarem comentando como a vida é monótona nesta cidadezinha, e que seria muito legal se aparecesse um cicloturista gatão e cheio de novidades para contar. Como isso nunca acontece, me conformei e fui assistir novela. Para minha surpresa, a morena aquela estava lá, com sua mãe (que obviamente estava sentada em um local que ficou bloqueando minha urubuservação). Enquanto assistia a novela, podia apreciar discretamente as pernas morenas, o pé bem feitinho, o perfil de Luiza Brunet, o cabelo absolutamente escuro e liso. Alguns magrinhos magalescos passaram na rua com o som do carro a toda, tocando o pior tipo de música possível, e a morena já se requebrou todinha, enquanto mantinha os olhos fixos na televisão (safada! pensei... deve ser a locomotiva do Bonde da Maria Gasolina...). Quando começou o Globo Reporter, me desinteressei de televisão, e quando levantei para dar boa noite, a morena se levantou também, e olha, era uma senhora morena, ao menos em estatura. Durmamos, pois, lá fomos nós, cada um pro seu quarto, claro, sem trocar uma palavra, claro. Deixei as janelas abertas, e a ventilação natural da noite estrelada permitiu um sono tranqüilo.

Outro dia, sábado, acordei sem muita pressa, pois a previsão era de no máximo 70km até Vargem Bonita, já na Serra da Canastra, com possíveis trechos de estrada de chão. Fui tomar café, aproveitando para comer bastante e levar no bolso um pão com margarina e doce de goiaba. Pude ver passar, pela última vez, a bela morena, que pra variar estava com a mesma roupa da véspera, uma blusa e uma saia frisada, ambas não muito longas. Após o café, botei a roupa já quase seca, e fui ao supermercado comprar pilhas, já com a bicicleta pronta e todo fardado. Por muito, mas muito acaso, o porteiro do hotel de Formiga estava entrando no mesmo supermercado onde escolhi entrar, e ele me falou assim como quem não quer nada: "não era você que estava no hotel em Formiga? Esqueceu o carregador do telefone lá". Na hora, o mundo caiu. Puuuta merda, e agora, eu precisava do telefone para ligar para Deus e o mundo, e era um maldito Samsung que ninguém tem o carregador, e eu estava de bicicleta, já de saída lá pro quinto dos infernos, e Formiga ficava láááá atrás de um monte de subidas horríveis, e eu ia perder o dia de viagem, morrer pedalando, e um carregador novo, se eu conseguisse achar, seria muito caro, certamente, que merda, por que eu sou tão trouxa, como é que eu esqueço um troço desse, e se fosse o GPS, ou a máquina, só não esqueço a cabeça porque tá presa, e assim prossegui a torrente de raciocínios que envolviam auto-culpa, auto-raiva e alta desorientação. Peguei o telefone do hotel e já ia indo para o orelhão, quando resolvi abrir mão da economia e pelo menos tentar descobrir o preço de um carregador de telefone. Depois de alguma pesquisa, onde novamente me desvencilhei de maneira bastante pouco polida das perguntas que os transeuntes faziam sobre de onde eu vinha, pra onde eu ia, por que meu cubo era tão grande, se minha bicicleta era de corrida, se eu tava dando uma pedalada por aí, etc. Uma pena, muito simpático o povo lá, mas já deu pra ver que o tipo de gente que pára pra conversar são os mais jaguara possíveis. Entrei numa loja lá de acessórios, e ela não só tinha o tal carregador (genérico, é claro, tomara que não queime meu telefone), como este custava míseros R$ 15,00, mais barato do que passagem de ônibus de ida e volta a Formiga. Surpreso com a facilidade com que meu drama havia se resolvido em quinze minutos, comprei mais um par de pilhas alcalinas, e tomei meu rumo para Vargem Bonita, já passadas onze da manhã.
O asfalto para lá é novo (o trecho de chão felizmente não existe mais), bom, e o trânsito é mínimo. Ao longo do inicialmente suave sobe e desce da estrada, pode-se ver no horizonte o degrau formado pela borda sudoeste da Serra da Canastra, que ocupa boa parte do horizonte, formando uma barra verde-escura empalidecida pela distância. As margens da estrada estão repletas de plantações, em sua maioria cafezais, e a povoação é mínima. Em um trevo lá adiante, parei para tomar dois sucos em lata e pedir informações, e ao saber que para São Roque de Minas (na verdade, meu destino inicial) eu teria de andar mais longe e subir mais lombas, preferi seguir para Vargem mesmo, que aliás ficava mais próxima da cachoeira da Casca D'Anta e da estrada de terra por onde eu continuaria viagem. Não muito depois desse trevo, passei por uma ponte em reforma (talvez devido às cheias deste ano), que ficava no fundo de um vale. Ali começava um trecho com subidas e descidas longas, que me cansaram bastante. Ali também fiquei pasmo, pois logo após a ponte, na subida, achei várias latas de refrigerante jogadas no acostamento, e estavam inteirinhas, limpinhas, era coisa recente de gente muito porca, provavelmente enquanto esperavam a liberação da pista durante alguma obra na ponte. Mesmo lá no meio de outras estradas onde seria inimaginável alguém jogar lixo na estrada, vi muito disso, latinha, saco de salgadinho (geralmente é comida que não presta, ainda por cima). Uma pena, realmente. Não juntei tudo porque estava de bicicleta, e infelizmente ficava pouco prático para mim consertar o erro alheio, naquele momento.
A cada quilômetro que passava, a estrada ficava mais sádica, e depois de passar em um povoado em cuja entrada havia duas placas, cada uma delas dizendo "bem-vindo a tal lugar", e cada placa dava um lugar diferente, ambos diferentes ainda do nome que aparecia no GPS, peguei uma subida de matar, onde empurrei a bicicleta em uma velocidade sub-lesma-tetraplégica, com o rendimento já muito comprometido pela falta de almoço, deviam ser mais de três da tarde já. E assim fui indo, a uns dez quilômetros da Vargem tomei uma chuvarada refrescante e ensopante, fui moendo os quilômetros um a um, com a serra já não tão longe sendo rapidamente engolida pela parede de chuva que passava. O último quilômetro e meio é uma descida animal, semelhante à que leva a Urubici para quem vem por São Joaquim, onde mesmo com piso molhado atingi uns 75km/h. Ao entrar na cidade, as placas: "ponte sobre o Rio São Francisco" e "bem-vindo a Vargem Bonita, a primeira cidade banhada pelo Rio São Francisco". Legal.
Subi pela outra margem, uma rua íngreme, no topo da qual havia um mercado com um monte de gente na frente. Parei para pedir informação, e o tamanho minúsculo da cidade diminuiu minha rabujice, levando-me a responder longamente de onde eu vinha, pra onde eu ia, etc, etc. Me indicaram algumas pousadas, e também a loja Baú de Lendas, de artesanato, onde eu poderia encontar panfletos e folders sobre o parque. Fui até lá, vi algumas fotos, pedi algumas informações ao rapaz, e como sempre os pontos indicados eram os mais manjados, as fotos que eu mais gostei eram de cachoeiras difíceis de achar, de acesso proibido, ou longe pra burro. Vi que a coisa não ia ser fácil por lá. Um cara que estava por lá, ao confirmar que eu era cicloturista, me perguntou se eu não conhecia o Vander, assim como se o Vander morasse no mesmo prédio que eu. Disse que não conhecia, aí ele explicou que era um chileno que veio até São Paulo, que ele tinha um site, recomendou que eu desse uma olhada... É uma pena que os cicloturistas não formem uma comunidade TÃO coesa, ao menos ainda não, mas é curioso ver como os ciclistas ou aqueles que têm algum conhecimento de cicloturismo acham que sim. Me despedi, depois de responder algumas perguntas inevitáveis sobre a bicicleta, o mais gentilmente que pude, e fui procurar as tais pousadas.
Fui direto à pousada Savana, numa esquina da praça. Casa minúscula, me atendeu uma senhora baixinha e gordinha. Estavam lá dentro também uma moça com uma criança pequena no colo. Ela mostrou o quarto, disse que era quinze, ops, vinte, e eu vi que ali eu não ia ser feliz, disse que ia ver, ia pensar, e me mandei. Desci a rua pela mesma calçada, e chamei na janela da Pousada São Francisco, onde ninguém atendeu. Uma moça baixinha passava pela rua, e eu perguntei onde andava o pessoal da pousada. Ela disse "a essa hora não tem ninguém aí não" "e tu sabe quando volta, ou como posso fazer pra achar?" "sei não", e ficou me olhando, sorrindo, indiferente à minha óbvia desorientação e necessidade de ser ajudado. Ultimamente em Minas tenho notado isso, tu pergunta alguma coisa, eles respondem e deu, não complementam, não sugerem, nada. Deve ser resultado das origens portuguesas, dizem que em Portugal é pior. Fui ao hotel Aconchego Canastra, muito bonito, fui bem atendido, só que a diária era quarenta reais, muito para mim que pretendia dormir três noites e estava com o capital contadinho, numa cidade sem Banco do Brasil. Quando estava já puto da vida, tendo desabafado um pouco com o cara do hotel, que me advertiu que por aqui o atendimento era assim meio simples ("simples não, é precário! Simples é outra coisa", retruquei prontamente, mas o cara do hotel ao menos já tinha visto que eu estava cansado e achou meio engraçado), resolvi fazer um lanche na padaria, pois não havia bar, nem janta, nem restaurante, nem nada por ali, onde tudo fechava cedo e as pessoas se alimentavam da brisa do anoitecer. Comi tremulamente uma coxinha e um litro inteiro de iogurte. Fui atendido por uma moça magrinha, com uma expressão de cachorro com fome, mas até meio bonita, com olhos grandes com cor de água de rio depois da chuva (ou seja, castanho claro, mas um castanho diferente dos outros, um tom muito forte e difícil de ver por aí). Já alimentado e minimamente mais lúcido, fui à tal pousada São Francisco novamente, e estava lá a tal da dona, que o cara do hotel me disse ser a dona Mariana, mãe do prefeito da cidade. Fui lá, ela me atendeu direitinho, disse que todos os dias de segunda a segunda ela servia almoço e janta, pois fazia comida sob encomenda para a Companhia Elétrica de Minas Gerais, que andava fazendo obras por lá. Me levou para ver os chalés que ela aluga, por quinze reais a diária, na verdade são apartamentos com banheiro e televisão, bem simples sem chegar a ser precário, nos fundos de um terreno à beira do rio São Francisco (não se enganem, naquele trecho o São Francisco é pouco mais que um riacho). Vi que tinha me dado bem, fiquei num lugar onde teria comida boa e barata, e acomodação ampla e tranqüila. A dona Mariana deu uma ajeitada lá no quarto, trouxe toalha, sabonete e roupa de cama, e se mandou. Tomei um banho, lavei roupa, e quando já era perto de sete horas subi para jantar, que depois das sete ela e as funcionárias se mandavam e fechavam tudo.
Eu nem estava com muita fome, mas a comida era bem boa, feijão, arroz, farofa de carne, mandioca, vagem, essas coisas. Me servi direto no fogão, ocupei um cantinho da mesa, peguei uma garrafa de água na geladeira, e mandei ver. Acabei repetindo duas vezes, mas isso só porque o prato, apesar de fundo, era meio pequeno, hehe. Saindo dali, fui pro quarto, onde ajeitei poucas coisas, vi um pouco de TV, e logo fui dormir. Tive de levantar umas duas vezes para matar bichos voadores que entraram enquanto deixei a janela ou a porta aberta com a luz ligada, mas exceto por isso o silêncio era absoluto, e dormi muito bem, pretendendo levantar cedo no outro dia para visitar a Cachoeira Casca D'Anta, uma das maiores do país.

Mas essa história, e outras, só conto amanhã ou depois, pois estou já de saco cheio de escrever, e pretendo sair para jantar e dar uma volta rápida, pois faz uma cinco horas ou mais que tou na LAN. Tudo para os meus queridos leitores. Um abraço a todos, e até breve!

2 comments:

Varda said...

Nossa, que Biblia !!

1- pneu furado, acho que era o que tu menos esperava.

2- que baita azar resolver fazer um reconhecimento da estrada e ficar a pé, empurrando a bike.

3 - Vais passar por Floripa na volta ?
Dá pra entrar na ilha pelo centro e sair pelo sul, de barquinho, e podemos acampar no sul da ilha, já me coloco a disposição para tal. :P Pra isso eu iria de bike contigo até lá.

Anonymous said...

é pneu, é lomba, é reta, é comida, é chuva, é barro..... mais de hora lendo. até a próxima leitura. bjo. Romi