Saturday, December 09, 2006

Dia 05 - São Joaquim, SC - 352 km (53)

E aí, Galera!

Em São Chico, depois de sair da LAN, pude jantar com o Cleber no corpo de bombeiros voluntários, onde pude ficar exposto às histórias e piadas da tropa (Bastos, Soares, Mancha, mas não sei se eram soldados, cabos, ou como é que se chamam os bombeiros em geral). Realmente o povo é bem engraçado, me receberam bem, mostraram fotos de indiadas passadas (o Bastos e um amigo dele foram, há muito tempo, de barra-circular, de Terra de Areia a São Francisco, Gravataí, Tramandaí e de volta a Terra de Areia, em quatro dias, diz ele que foi a coisa mais divertida que ele fez em toda a vida). Vi também uma foto do Daisuke Nakanishi lá nos bombeiros de São Francisco, certamente por recomendação do Rodrigo Hardt. A janta foi um arroz com galinha ao estilo campeiro (nada light), regada ao Caldo-preto-dos-cães-do-norte (o original), e acabamos indo dormir perto da meia-noite. O Cleber me cedeu a cama dele e ele foi aos bombeiros passar a noite lá e já ganhar umas horas no cartão.

Na quinta, acordei todo cansadão, e por preguiça e comodismo acabei ficando para almoço, ajeitando as bagagens sem pressa e me preparando para a pedalada do dia. Resolvi seguir a recomendação do Roque e ficar lá na fazenda deles, a caminho de Bom Jesus, mais exatamente uns 4km após o Faxinal dos Pelúcios. Saí à uma da tarde, o dia estava bem ensolarado mas não chegava a estar quente, e o vento soprava de leste para oeste.



Devido à ponte caída pela estrada de terra, que era por onde eu pretendia ir inicialmente, fui pelo asfalto, parando em Tainhas para comer uma torrada, um suco em lata, um chocolate e algumas balas. Segui com vento a favor, mas não ajudou tanto porque após cruzar o rio (com uma longa descida), tive de subir, subir, subir, até a Várzea do Cedro, praticamente, e com vento a favor a refrigeração ficou reduzida.



Nem parei na Várzea do Cedro (que é só um trevo com duas ou três casas, uma delas um simpático restaurante), e dali pra frente o asfalto ficou bem áspero, sempre com as constantes subidas e descidas, movimento mínimo de carros e caminhões, e de novo o vento lateral pela direita.



Esperava avidamente chegar ao Faxinal dos Pelúcios, pois sabia que lá havia comércio, e a fome e a canseira já se abatiam sobre a minha carcaça. Quando cheguei ao tal Faxinal (que pertence ao município de Jaquirana), vi uma bodega à esquerda, mas preferi seguir. Vi também uma outra bodega à direita, menos simpática ainda do que a anterior, e preferi seguir para o próximo comércio. Só que o Faxinal, além de uma casa, uma entrada de estrada de chão, e uma igreja pequena, só tem as duas bodegas. Ao todo, devem ser uns 300m de extensão... Sendo assim, voltei até a segunda bodega, onde fui atendido por um senhor bem velho, que me serviu um guaraná de garrafa. O bolixo dele era um verdadeiro escombro, e por isso mesmo tinha seu charme. Provavelmente se procurasse direito veria ali algum calendário que estaria na parede desde antes de eu nascer. Tomei o guaraná, troquei algumas palavras, e me mandei, agora com um pouco mais de energia. Quatro quilômetros depois, em meio a paisagens longínquas de campos e colinas e araucárias, peguei à esquerda na porteira secreta (cujas referências me foram dadas pelo Roque), desci uns 400m de estrada trilhesca, e cheguei na fazenda, onde o funcionário Paulinho (o nome eu descobri depois) cortava grama com roçadeira.

Entrada da Fazenda dos pais do Roque

Logo em seguida, chegou o filho dele, o Maicon (o nome provavelmente seja esse mesmo), a cavalo. Me apresentei, deixei minha bici encostada no galpão, peguei algumas roupas, fiz minha cama no andar de cima (do galpão), e fui tomar banho.



Para uma casa que depois soube ter sido construída há mais de 120 anos, até que estava relativamente firme. O banheiro não tinha ralo, essa função era cumprida pelas frestas das tábuas do piso, propositalmente mais largas que o normal para que a água pudesse escorrer. Realmente, ao menos pude compreender o que é realmente o espírito da vida gaudéria, antes de sair do Rio Grande.



Mas, pouco depois de eu sair do banho, pude ter o prazer de conviver um pouco com a própria PERSONALIZAÇÃO da vida gaudéria, já que os pais do Roque chegaram, de caminhão, vindos de Passo Fundo, aonde foram levar duas éguas vendidas, e já trouxeram um touro novo para a fazenda. A mãe, dona Jane, que eu já conhecia melhor, é extremamente querida, muito culta e apegada aos valores da família e da lida doméstica. O seu Ângelo, no próprio dizer da dona Jane, é a própria encarnação do gaúcho, e isso se pode perceber rapidamente, pois após um cumprimento rápido a este que vos escreve, começou rapidamente a descarregar vários canos de PVC que trazia amarrados ao topo do caminhão, colocou o touro na mangueira (um cercado de madeira próximo ao galpão), e foi logo providenciar a vacina para o animal (desnecessário dizer que ele próprio aplicou a vacina, com um aparelho que é uma mistura daquelas pistolas de gangster com uma agulha capaz de furar uma parede). O gauchismo dele não se manifesta somente pelo jeito pró-ativo de lidar com as tarefas campeiras, mas também com uma hospitalidade bastante generosa (embora direta e sem firulas), e com um talento ímpar para contar histórias.

Uma das paredes da casa é praticamente um museu!

Antes do pôr-do-sol, tomei um "camargo" preparado por mim mesmo: com uma caneca de alumínio, contendo um terço de café preto extra-forte com açúcar, fui até uma das vacas jersey (importante frisar: fornecem o leite para o melhor doce de leite que existe no mundo, que é feito pela dona Jane), e ordenhei eu mesmo, sem muita dificuldade (vaca boa é outra coisa) o leite restante para encher a caneca, que ficou com um espesso colarinho de espuma.



O resultado é um café com leite bastante nutritivo, saboroso, e obviamente nem um pouco light. A janta: cuzcuz doce com leite, arroz com linguiça, pão caseiro, goiabada, nata, café com leite. Um verdadeiro banquete.Depois dessas iguarias, fui deitar lá no galpão, mas o vento (com as respectivas portas rangendo) e a movimentação dos animais (não apenas os domésticos) dificultaram um pouco o início do meu sono.

Na sexta, acordei com o seu Ângelo me dizendo "ô, Helton, toma aí um camargo", e me entregando a bem-vinda caneca. Tomei o café feliz, pois achava que a cafeína me acordaria pra iniciar logo a jornada do dia, mas na realidade o que ocorreu é que eu fiquei ainda com mais sono e só consegui me arrumar decentemente com muita lentidão, saindo para pedalar por volta das onze da manhã, após um reforço de café da manhã com cuzcuz. Não muito depois de sair, o asfalto foi piorando, e começou o já previsto trecho de estrada de chão, antes de Alziro Ramos. Nesse trecho, pude perceber que andar com bagagem representa dificuldades não só com relação ao peso em subidas, mas também com relação ao sofrimento do equipamento nas trepidações maiores, já que dava pra perceber que os engates dos alforges sacudiam bastante, e a bolsa de guidão dava um salto cada vez que a roda dianteira atingia um obstáculo maior. Claro, isso porque a estrada era bastante irregular, tornando necessário desviar constantemente e escolher o melhor caminho, ocupando toda a largura da estrada durante essas manobras. Alziro Ramos também é uma encruzilhada com um punhado de casas e um restaurante, passei reto e segui pelo asfalto. Não muito depois, a esperada placa "longo trecho em declive", para cruzar o Rio Tainhas. Após a descida longa, uma ponte bonita e a longa subida. Quase no final da subida, com calor e fome, parei em uma parada de ônibus que mais parecia uma casinha tipo banheiro, com um banco de tábua, e comi um pedaço de copa, outro de queijo, alguma goiabada, e água. Segui subindo, passei o segundo acesso a Jaquirana, onde um povo num ônibus municipal ficou me olhando com curiosidade, e mais adiante tinha outra descida longa, com uma ponte mais legal ainda, sobre o Rio das Antas, e ali parecia inclusive ter área para camping, e existia também uma placa enorme com o nome de alguma empresa madeireira. A subida depois do Rio das Antas, em direção a Bom Jesus, me exigiu bastante, pois a subida ia diminuindo a inclinação, mas não parava de subir, e ali o sol estava brilhando com bastante intensidade. Consegui pegar carona remorística em um caminhão, acho que por um quilômetro mais ou menos, e fui indo, já no trecho mais plano, a uns 1100m de altitude, até chegar em Bom Jesus. Pedi informação em um posto de gasolina, e fui encaminhado ao comércio do seu Nei, um estabelecimento com elementos de bolicho, mini-mercado e restaurante, onde às três horas da tarde comi uma alaminuta bem reforçada. O seu Nei perguntou aonde eu ia, e eu disse que ia a São Joaquim, então ele recomendou que eu pousasse na Vila Santo Inácio, onde a dona Laura, uma amiga dele, possuía uma pousada. A Vila Santo Inácio não ficava no caminho que eu pretendia fazer inicialmente (passando por Casa Branca e São Sebastião do Arvoredo), e o seu Nei me disse que a estrada por Santo Inácio não só era mais perto quanto era melhor. Só vantagens, portanto. Saí e peguei a estrada (de chão) em direção a São José dos Ausentes, uma estrada de chão poeirenta e sem grandes dificuldades, em meio aos campos. Uns 10km depois, encruzilhada à esquerda, com predomínio de descida, já bem pior, por causa das pedras, valetas e irregularidades. Nesse trecho, parou um carro vermelho com uma senhora ao volante, uma mistura de Viúva Porcina com Aracy de Almeida, roupa vermelha, óculos escuros, cabelo preto laqueado, muitas jóias douradas, batom rosa, "tu que tá indo pra São Joaquim?" disse ela, com ar de xerife. Logo vi que era a dona Laura, da pousada. "Eu deixei a chave na escada, então tu chega lá e pode dormir, amanhã tu sai, tranquilo, tem um rapaz que cuida por lá e provavelmente tu vai encontrar com ele. Pode me deixar pago agora, então". Com algum pesar, entreguei a notinha de dez (sim, pernoite por derreáu), ficando a sensação de estar sendo logrado, já que agora então eu teria de chegar lá de qualquer forma (e havia outra opção?). Me despedi, e continuei me desviando dos buracos, quando em seguida cheguei à represa sobre o Rio dos Touros, que é bem parecida com a represa de Vila Eletra entre São Chico e Canela: uma represa à direita (esta com um ar mais de brejo do que de lagoa), um espaço por onde a água corre, uma passarela de cimento parcialmente coberta pela água, com largura suficiente para UM veículo (não muito largo, que fique claro), e um lajeado à esquerda, por onde a água escorria ruidosamente formando aquela imagem típica de lajeado de pedra com reflexos azuis do céu.



Seguindo adiante, pois ainda faltavam muitos quilômetros, peguei água numa casa, e apareceu outra bifurcação, onde peguei à esquerda, e então houve um trecho de descida longa, de subida longa, descida, subida, perdi a conta, mas o fato é que a quantidade de cascalho, irregularidades, curvas, buracos, pedras, pontes e riozinhos que se cruza só não inviabiliza o trecho porque a paisagem é realmente recompensadora, nos mesmos moldes de São José dos Ausentes: várzeas distantes com morros ondulados cobertos de grama, em cuja encosta se pode por vezes enxergar a continuação da estrada láááá longe (o que pode ser desanimador se a alma não estiver preparada), e muitas e incontáveis plantações de Pinus, já que é bastante perceptível que esta é uma região de muita terra, muita árvore, muita cerca e pouco dono.






Depois da mais cruel das subidas, e de um guaraná em uma bodeguinha, cheguei à Vila Santo Inácio, uma pequena vila madeireira onde todas as casas são verde e branco, e onde houve uma próspera (para os donos) madeireira, agora semi-desativada, pois para variar alguém se deu conta que era mais vantagem vender árvores do que tábuas. O povoado é tão pacato e quieto que parece deserto, e pelo tanto de estrada ruim que o separa de qualquer núcleo urbano, para qualquer lado, não surpreende que seja assim.Cheguei na pousada e a identifiquei facilmente, pois havia no fundo de um corredor uma porta escrito "banheiro", onde alguém de fato tomava banho. A casa era indefectivelmente pintada de verde e branco, e como depois pude ver o chão era tão encerado e limpo que praticamente se poderia lambê-lo (inclusive no corredor da rua). O Erivelton, que é o cara que cuida por lá, apareceu logo e me mostrou onde era o quê, subi ao quarto, guardei algumas tralhas, tomei meu banho, não sem antes combinar de jantar na dona Clarinha, cujo marido era quem tomava o banho quando cheguei. A dona Clarinha é o "braço direito" da dona Laura, ao que parece, e ela mora duas casas pro lado apenas. Na casa dela, fui muito bem recebido, e jantei feijão, arroz, massa, chuletas na panela, alface, pão e água da torneira, só que a água da torneira em Santo Inácio poderia ser engarrafada e vendida no super! Após me fartar e pagar um valor bastante válido (para mim), me despedi e fui dormir, depois de anotar algumas coisas no diário e olhar os mapas.

Acordei hoje (sábado) com tanta preguiça quanto nos outros dias, saindo da cama apenas lá pelas dez e meia. Fui pegar a roupa que ficou no varal, e fui alternando entre me arrumar, arrumar a bagagem (os alforjes começaram a incomodar, devido à trepidação os engates inferiores ficam desengatando, mas nada grave), e fazer um desjejum que valesse pelo almoço, com o kit completo: pão, copa, queijo, goiabada, e nescau de leite em pó, além de um pedaço de chocolate.

Café da manhã. O chão da pousada era realmente muito limpo!
Saí ao meio-dia, e por algum tempo a estrada seguiu tão horrível quanto no dia anterior, até um trevo que ia pra São Joaquim ou São José dos Ausentes.



Ali a estrada passava mais um pouco em meio aos campos, e logo começava a descer, descer, o ar ia ficando um pouco mais quente, a mata ia ficando mais densa, com aquele aroma típico de mata atlântica com terra úmida, e a estradinha ficava serpenteando em meio à encosta, até que subitamente chegou a ponte sobre o Pelotas, bastante largo e raso naquele ponto.





A ponte tinha um reforço de grades de metal em seu centro, já que um ou dois vãos estavam quebrados. No lado de lá do rio (em Santa Catarina, portanto), sob a sombra de árvores, num lugar com um gramadinho, tirei o capacete, as luvas e a sapatilha e entrei na água, para refrescar. Ô, vidinha mais ou menos... Fiquei uns 40min parado, e às duas horas da tarde segui viagem, subindo, subindo, subindo... Parei num vilarejo chamado São Francisco Xavier, já na parte mais alta do caminho, onde tomei um guaraná e comi algumas bolachas salgadas.



Segui adiante (já eram três da tarde, e faltavam 24km), e apesar de já estar a mais de 1100m de altitude, a estrada seguia subindo, algumas vezes descia bastante, depois subia de novo, e cada subida chegava mais alto. O movimento também ia aumentando, à medida que chegava mais perto da cidade, e as pessoas me olhavam com curiosidade de dentro dos veículos, embora poucas retribuíssem meu abano de cabeça (já está virando um cacoete). Chegando em São Joaquim, fui direto ao Corpo de Bombeiros, não para ser socorrido, mas para ser hospedado.


Me apresentei tentando ser simpático e passível de ser hospedado, e acho que consegui. Rapidamente, coloquei a bici em uma peça separada, tomei um banho restaurador, e tive de me envolver em uma limpeza de emergência, já que o chocolate que eu levava na bolsa de guidão havia derretido e transbordado, melecando vários elementos, incluindo o carregador do telefone, que foi lavado debaixo da torneira com escova de dente e sabão, tomara que sobreviva, o pobre.



Ao ser chamado para a janta, fui correndo a um boteco comprar duas garrafas de dois litros de refrigerante, mas o pessoal por aqui é veloz, quando chegeuei de volta já estavam lavando a louça... Minha janta foi constituída de feijão, arroz, carne cozida em panela de pressão, alface, pão e guaraná. Que beleza! Depois disso, fui deixado à vontade em frente a um computador com monitor plano de 17 polegadas, de onde lhes escrevo, e onde espero o soninho chegar.

Por hoje era isso, galera, e até mais!

1 comment:

FarAmiR said...

Mas óia, o senhor parece estar se divertindo pacas, antas, entre outros. Tendo como única preocupação descansar bem pra seguir no outro dia..
Eu repito, parabéns e keep moving, Ghost Biker. Que venham fotas no Flickr, porque memória de câmera é curta e a estrada é longa..

Abração (ui, abração..)