Saturday, December 16, 2006

Dia 12 - Curitiba, PR - 955 km (117)

E aí, Galera

Depois de um considerável tempo, então, sobrou disposição de escrever mais um pouco. Esses últimos dias foram dias, claro, de paciência e aprendizado, fechando hoje (sábado) o "ciclo" da BR-101, onde muito se pedala, pouca foto se tira, e se não houver criatividade, muito pouco se conta. Farei o possível.

(desnecessário dizer que depois da janta de segunda, ficamos enrolando até tarde, indo dormir lá pelas duas da manhã, após atualizar fotos, orkuts, etc.)

Terça de manhã, acordo depois das dez, já com vontade de me mexer logo (impressionante como essa vontade ressurge logo, apos uma parada de um dia num estirão de uma semana), e imediatamente vou lá expulsar meu anfitrião de sua cama, coisa que foi mais fácil do que pensei. Fomos à garagem, onde tive de me despedir, não sem pesar, da amiga Goiabada (no fim), da amiga Copa (só uma tampinha) e do amigo Queijo (esse ainda tinha até, mas fedia e estava com muito papel grudado nele, além de ter ficado duas noites exposto à atmosfera potencialmente povoada da garagem do Varda). Arrumei alforjes, amarrei barraca e corrente (ainda virgens nesta viagem...), e comi uns pedaços de pão "maturado" com margarina, e Nescau, que serviram como pré-almoço. O Marcelo resolveu ser bonzinho e me acompanhar no trecho urbano, e o resultado disso pode ser visto aqui:


Estava uma manhã meio chuvosa e abafada, e pelo que pudemos ver de previsão do tempo, nada animadora. Fomos assim mesmo pedalando com o barulhinho de pneu molhado, paramos embaixo da ponte para fazer (mais) fotos, e seguimos pela beira-mar norte do continente, disputando espaço com carros, ônibus e outros ciclistas, até chegar na 101. Fomos mais um pedaço, e o seu Marcelo filmando e dando dicas sobre o caminho, até que chegamos em um viaduto e ele disse que pegaria o retorno. Nos despedimos, e ele tomou a lateral, para passar por baixo do viaduto, enquanto eu acelerava viaduto acima. Enquanto estávamos lado a lado, escutei-o gritar algo como "vai lá, gaúcho", e ele lentamente sumiu detrás do canteiro. Percebi que naquele momento se encerrava uma etapa de minha viagem, uma boa etapa que foi conhecer e conviver um pouco com o novo amigo Marcelo Varda, com o qual consegui (embora não tenha dito isso a ele) encontrar muitos pontos em comum. Quando ele sumiu completamente, voltei a olhar para a estrada molhada, viaduto acima. Naquele momento, passou um caminhão barulhento soltando fumaça.
Segui então pela 101, passando Biguaçu, as entradas para Governador Celso Ramos, e o trecho meio vazio que vai para Tijucas, sempre com chuva e com vento nordeste, portanto contra. Parei, nesse trecho, em uma parada de ônibus, onde descansei um pouco e recoloquei um parafuso do bagageiro, que descobri ter caído há algum tempo, fato que causava um barulho alienígena há alguns quilômetros já. Ainda bem que levei parafusos reserva, uááááhahahaha!!





Parei em um restaurante perto das três da tarde, onde me empanturrei, como sempre, com um buffet já no final e sobremesas servidas em algumas porções consecutivas. Cerca de uma hora depois, segui passando por Tijucas, trevo de Portobelo, entrando em Meia-Praia (já Itapema), onde me esperaria a Aline, namorada do Rodrigo, ambos do Natsul, grupo naturista ao qual recentemente me filiei, como sabem. O trecho depois do almoço, ao menos, foi sem vento contra.
Parei em frente ao Calçadão Praia Shopping, onde liguei para a Aline, que em vinte minutos veio de Balneário Camboriú, onde estava, para me guiar até o apartamento dela, de carro, muito perto dali. Realmente ela mora de frente o mar, pois se der um cuspe da sacada, com força, é capaz de o cuspe cair na areia da praia já. Pena que o dia estava bem chuvoso mesmo, naquele momento, e um vento forte vinha do mar. Tomei um banho necessário, e fomos então de carro tentar conhecer a Praia do Pinho, terceiro possível ponto de referência naturista em minha viagem (o primeiro, Pedras Altas, em Palhoça, foi abandonado devido também à chuva e à distância, e o segundo, Galheta, em Floripa, por ser bem fora do caminho, e local já conhecido por mim - recomendo muito!). Ao chegarmos na portaria, o porteiro nos informou que, nos dias de semana, a entrada para visitantes era até as 18h apenas (e já passava das 18h naquele momento), de modo que optamos por tentar voltar no dia seguinte, se a meteorologia colaborasse. Fomos até Balneário Camboriú, visitar o Valdir e sua esposa, que se não me engano se chama Zelma. Eles são um casal (não diga) que cuida bastante da Praia do Pinho, tanto ambientalmente quanto eticamente, orientando as pessoas para que tenham um comportamento socialmente e naturisticamente aceitável na praia. Lá conversamos bastante longamente sobre esses assuntos, assim como sobre viagens aventurescas pelo Brasil, coisa que o Valdir muito já fez, a pé e de carro. A conversa foi felizmente acompanhada por um farto café da tarde, oferta que aceitei com a pouca cerimônia que permeia o comportamento dos cicloturistas famintos, como já percebeu qualquer um que tenha sido exposto a algum espécime dessa fauna. Basta dizer que parei de comer quando acabou tudo o que tinha na mesa, hihiii.
Saímos de lá já escuro, e fomos fazer uma visitinha à nova amiga Rosy, com quem já falava pelo Orkut, e que sempre me mandava mensagens me desejando boa sorte. Ela é bastante extrovertida e simpática, e se interessou muito pelas minhas histórias, um interesse vivo muito visível naquelas pessoas que adorariam fazer o mesmo, mas que sentem receio em tentar, e ao mesmo tempo prazer em conhecer e ouvir a história de quem está fazendo. Quem sabe ainda, hein, dona Rosy?
Saímos de lá e fomos direto para a casa da Aline, ainda satisfeitos com o café do Valdir, apenas para dar uma olhada rápida na internet e ir nanar ouvindo a brisa e as ondas marinhas, eu num colchão na sala.

No outro dia, rapidamente, ao acordar, percebemos que a idéia de ir ao pinho teria de ser abortada, pela chuva.



A Aline tinha um compromisso onze e meia, e um pouco depois disso, e depois também de bater umas fotos em frente ao prédio dela, me mandei pela principal de Meia Praia até sair na 101, o asfalto molhado, algumas manchas de sol eventuais, um dia abafado. Ao passar pela entrada da interpraias, até deu aquela pena de deixar o Pinho para trás, pois o dia estava abrindo, mas azar, a esperança nem sempre é boa substituta para o realismo, segui viagem. Achei interessante o túnel antes de Balneário Camboriú, metade dele é leve subida, metade é leve descida, e todas as luzes apontam para frente, de modo que tive de tirar uma foto lá dentro apontando para a saída, após o "topo", atingindo velocidades perigosas no trecho final, visto que as tubulações que ladeiam a estreita passarela possuem fixações bastante pontiagudas e ameaçadoras.



Do outro lado, pude contemplar sem muita reflexão os arranha-céus da orla, enquanto tomava no corpo o último chuvisco do dia, provavelmente decorrente do aclive topográfico do recém-cruzado morro. Embora houvesse oferta relativamente abundante de locais de parada para comer, preferi seguir, e somente antes de Penha parei em um boteco para comer uns risólis de carne, chocolate, suco e refri.
Depois do pseudo-almoço, segui refletindo se deveria seguir a sugestão do dono do boteco, que me disse que existia o posto Sinuelo, que era um paradouro onde se encontra de tudo para o viajante (meu cérebro construiu a imagem: cyber-café, milhões de chuveiros, milhões de quartos, restaurante estilo penitenciária chique, milhões de caminhoneiros com barba por fazer com camiseta regata branca encardida, pátio lotado de carretas sobre um chão de paralelepípedo enlameado cheio de poças d'água refletindo a luz de lâmpadas de sódio em dezenas de postes em forma de ponto de interrogação). A outra opção seria parar em uma pousada onde já fiquei, no trevo para Itapocu (sim, é um lugar minúsculo), opção mais próxima e mais garantida, porém com infra sabidamente limitada. Me preocupava especialmente ver se o Roberto Coelho, de Curitiba, já havia deixado o scrap com seu telefone e/ou endereço, para que pudesse encontrá-lo quando lá chegasse, no fim de semana.
Ao passar por Barra Velha, mais adiante, percebi que estava bastante perto do mar, e tardiamente notei que havia uma rua paralela, à beira-mar, asfaltada, a apenas uns 80 metros da 101. Nesse ponto, já havia decidido ficar em Itapocu, sendo que isso provavelmente me daria tempo para tomar um banho de mar - é uma heresia que um aficionado por mar como eu, há dias na estrada sendo lavado por suores e garoas, passasse tão perto do mar DE SANTA CATARINA e não entrasse para um mergulho.
O curto trecho pedalado na orla, uma bem-vinda pausa no frenesi pseudo-urbano da BR-101, não só descansou um pouco minha mente como também me fez abandonar convictamente a sensação de perda balneária, já que pude ver uma praia com faixa de areia estreita, grossa, cortada por eflúvios de origem duvidosa, com ondas baixas, mexidas e escuras.
Antes de Itapocu, já com tempo de sobra, distância restante totalmente ao alcance, e compulsão por banho marítimo amansada, parei na bela Tenda Alves, onde fui atendido por uma senhora e sua filha, e pude tomar água de coco no coco e comer (foi necessário persistência!) dois cachos de uva daquelas bem grandes com casca durinha, mas que beleza!



Bati algum papo com um caminhoneiro que parou lá, me deu umas dicas sobre estrada, sobre a serra de Curitiba, etc. Ele e a filha da senhora da tenda disseram que na subida da serra havia alguns pontos onde correm córregos e eu poderia me banhar um pouco. Coisa muito promissora. Peguei informações para achar a pousada também, e toquei ficha. Não menos de oito quilômetros depois, lá estava eu.
Cheguei, encostei a bici no degrau, entrei com aquela cara de cansado e suado, me atendeu uma senhora que poderia ser a dona do lugar, me chamando de querido, etc, anotou meus dados a mão em uma folha de caderno, me levou até um quarto. Eu frisei que a bicicleta deveria entrar no quarto, obrigatoriamente, e ela gentilmente removeu uma cômoda de um quarto de duas camas (uma de casal e uma de solteiro) com banheiro e ventilador de teto, e eu fui deixado em paz, sozinho.
Tomei um longo banho, chegando a me acocorar (não é acrocar, como o pessoal fala...) no box, deixando a água cair, ou então ficando por longos momentos espiando da janelinha o movimento na BR, enquanto era refrescado pelos pingos frescos. Ai, que fescura!!! Depois do banho, tentei anotar algumas coisas no meu mini-diário manuscrito com planilha de gastos, mas o soninho pegou e tirei uma sesta de umas duas horas! Quando consegui reagir, já eram oito e meia, e resolvi que deveria comer, e logo. Sabia haver um boteco ao lado, então foi para lá que me mandei. Com sorte encontraria uma bela moça que lá estava quando fiquei um tempo na entrada da pousada descansando, e se não me engana a miopia ela ficou me olhando de longe, com lânguida curiosidade...
Saí do quarto e na recepção não havia ninguém. Saí para a rua, e o boteco estava definitivamente fechado e às escuras. Percorri as dependências do andar térreo, incluindo um ambiente com uns caça-níqueis, mas só ouvia rumores vindos do andar de cima. Voltei à recepção do hotel, e nada. Na peça ao lado, um bife fritava, abandonado. Ao retornar à saída, em busca de algo ou alguém, me apareceu um senhor, que entrou e rapidamente foi para trás do balcão. Antes disso ainda me olhou, com expressão entusiasmada: "tu que é o ciclista?", ao que respondi "sim, sou eu", e ele "pô, bem incrementada tua bicicleta!". "É especial para viajar", disse eu, levemente intrigado com o fato de não lembrar de qualquer oportunidade na qual o até então desconhecido pudesse ter tido a chance de ver a minha bici. Lhe perguntei: "tá fechado o bar ali?", "tá, tá fechado, eles tão em reforma". "Pois é, é que eu queria jantar". "É, na verdade eles vão inaugurar amanhã, só", e se foi para trás do balcão, ver o bife". "E onde é que eu vou jantar então?", perguntei, e o ogro que estava mexendo no filé "como?", e eu, com o manancial de paciência começando a secar "onde é que tem JANTA?!". "Ah, faz assim então, ali pra trás tem um posto com restaurante, é coisa muito boa, comida caprichada, acabei de vir de lá" (e tava fritando bife!). Eu "É longe?" ele "não, não, deve dar uns 200 metros" eu "dá pra ir de bicicleta ou tem que ir caminhando?" ele "vai caminhando mesmo, eu fui e voltei caminhando, já fiz uma física!" eu (com alguma vontade de espancá-lo por não perceber que eu não só já havia feito a minha "física" do dia, como não tinha a menor vontade de tornar a usar e expor a minha "bicicleta incrementada" naquele momento) "(suspiro) e vai aqui pela beira de BR, mesmo?" ele "isso, só seguir, dá uns 200 metros".
Lá fui eu, com aquela sensação de entrar em fria, celular e chave do quarto num bolso, carteira cheia no outro, havaiana nos pés, bermuda e camiseta. À medida que me afastava do hotel em direção ao viaduto, a iluminação foi ficando daquelas meio de filme de terror americano, coisa de encruzilhada de cidade pequena à noite, pouca luz, nenhum movimento, barulho dos caminhões, grilos, lâmpadas de mercúrio zumbindo e arremessando para baixo seu pálido brilho azulado, passos (os meus, no caso). Ao me afastar mais, pegando o acostamento da BR, muitos metros além dos 200 que o jaguara havia estipulado, fiquei completamente no escuro, vislumbrando a estrada somente graças à rápida varredura dos faróis dos veículos que passavam rápidos e indiferentes. Houve algum receio de encontrar algum mal intencionado no caminho, e de que esse encontro se desse através da colisão pura e simples, já que a escuridão não era pouca, mas logo pude ver, atrás de uma elevação em curva na estrada, o brilho do provável local da janta, e uma placa, daquelas azuis que têm um pneu, um telefone e dois talheres cruzados, com a legenda "300 m". Realmente a "física" do tio da pousada afetou sua capacidade de avaliar distâncias, o manco...
Dentro do restaurante do posto, havia um buffet, e me servi de massa, lasanha, feijão, salada, e era servido um bife na chapa, que pedi acebolado, com um suco de morango feito com polpa congelada. Pude assistir uns pedaços da novela enquanto comia, e a televisão, enquanto gritava sem trégua, era sistematicamente observada pelas pessoas que mastigavam, como não poderia deixar de ser. Ao pagar, pedi informação para a caixa, sobre a possibilidade de seguir para a pousada por uma estrada paralela que eu havia visto enquanto vinha jantar, com pouco movimento e iluminada, mas ela não só custou a entender que eu não estava de carro, como também não deixou claro se tal estrada era vantajosa, viável ou mesmo possível. Resolvi esquecer o perguntômetro e recorrer ao botãozinho do F***-se, indo em direção à estradinha essa.
Não sei se é pior andar sozinho à noite de havaianas e uma carteira no bolso por uma rua escura ou por uma iluminada. Várias pessoas, sozinhas ou em grupo, passaram por mim no sentido contrário, mas tentei fazer com que a cara de mau prevalecesse sobre a expressão corporal de receio que lutei para não demonstrar. Depois de passar pelas pessoas, ainda tive de conviver com uma carreta mal-assombrada que vinha lá detrás, pela rua, suas luzes ligadas, mas a míseros sete ou oito por hora, como se estivesse me seguindo. Ao ser ultrapassado por ela, vieram mais duas, no mesmo ritmo, e então elas imediatamente aceleraram, fizeram a curva em direção ao trevo da pousada, já próximo, e se mandaram. Agora vejo que o primeiro motorista estava só esperando seus companheiros de viagem para seguir adiante, noite adentro.
Ao entrar de volta na pousada, respirei aliviado ao ver que o ótimo guia-recepcionista não estava no balcão, apenas havia um agrupamento de camareiras, algumas inusitadamente bonitas, que me lançaram olhares constrangedores enquanto eu rumava para o quarto. Atualizei minhas anotações e fui dormir, esperando acordar disposto no dia seguinte.

Acordar até que acordei cedo, mas enrolei até quase nove horas, que é o horário em que o café da manhã dos hotéis costuma encerrar, então fiz um esforço e me levantei, me vesti (não preciso nem dizer que nos quartos de hotel exerço a forma mais primitiva de naturismo, que é o nudismo doméstico, especialmente para dormir), e fui ao andar de cima para me alimentar. Tomei café com leite e iogurte, e comi pão com margarina, bolo e um pedaço de abacaxi, observando o movimento na via e o céu com manchas azuis, prenunciando um dia quente.
Voltei ao quarto e, antes de me organizar definitivamente, ainda ditei mais um pouco, pois penso que é melhor descansar completamente e sair bem disposto, do que contrariar a sabedoria do corpo e pedalar contrariado. unto aos preparativos finais, incluí, nesse dia, uma camada rala de filtro solar nas partes mais expostas (ah, pessoas, além de barbudo, cabeludo e provavelmente mais magro - e com a lordose bem aparente, deve ser o cansaço - estou com as pernas e antebraços marrons afu, mas só esses lugares, também :o( . Ao chegar à recepção, encontrei novamente a senhora do dia anterior. Encostei a bici para pegar a carteira e pagar, e ela deu uma olhada, perguntando "essa bicicleta é boa, né", ao que eu inevitavelmente respondi "é, eu montei especialmente para viajar". "Quanto custa uma bicicleta dessas, é cara?" e eu, já contrariado e encarando ela bem no olho, mas com expressão simpático-cínica "é, mais de mil reais" e ela "aaaahhh!" com aquela expressão de bocó. Nesse momento, após eu largar os 25 trocados em cima do balcão, apareceu lá um cliente, acompanhado de sua namorada até bem bonitinha, a senhora falando "olha só, o rapaz aqui tá indo até Minas Gerais de bicicleta. É coragem, né, hein..." e antes que ela continuasse eu falei "bom, aqui tá o pagamento, a estrada é longa, eu vou indo" e o resto do meu sorriso ainda colidiu com o olhar penetrante e provocador da "namorada" do hóspede, por um instante fugaz. Botei as rodas na rua, me introduzi rodando por sob o viaduto, cruzando a BR, e toquei em velocidade de cruzeiro para o norte. Ao olhar para a direção da pousada, para ver se estaria sendo seguido por uma quadrilha de jagunços latrocidas esquartejadores de cicloturistas, vi, ao lado do letreiro "POUSADA", em letras tão garrafais quanto, o letreiro "SAUNA". Aaaaaaahh, então era isso, como já deve ter notado o leitor atento e mais malicioso do que o ingênuo e mentalmente cansado pedalador que vos escreve.
Tranquilizado pela crescente certeza de não estar sendo seguido, e intrigado pela pouco perceptível associação entre os dois estabelecimentos praticamente mesclados num único prédio, segui viagem, esperando chegar a Garuva bem antes do pôr do sol. Ao falar com meu pai por telefone, na véspera, recebi a informação de que a chácara que meu tio tem em uma estrada asfaltada que é prependicular à 101 distava uns 20km, para fora da BR. Entretanto, telefonei para o marido da minha prima, genro de meu tio, e este me informou que seriam no máximo 13km, e que eu poderia falar com o seu Quiliano, o caseiro, que seria rápida e gentilmente acolhido lá.
Durante a manhã, uma das primeiras e principais preocupações foi quanto a encontrar um local com internet que eu pudesse usar. Parei no tal Posto Sinuelo, e para minha surpresa ele não era uma mini-cidade para caminhoneiros, mas sim um posto de combustível misturado com uma loja de departamentos à beira de estrada. De fato, tinha tudo que se pode imaginar, desde camisa de pano para lampião até bombom Ferrero Rocher edição especial de Natal, agora, quarto e internet, não tinha mesmo. O simpático e padronizado rapaz do atendimento me informou que em um determinado viaduto da BR, havia um acesso a um bairro, em cuja rua principal existia uma LAN-house. Animado pela perspectiva de ler logo os scraps, segui viagem, entre as inúmeras tendas e lojas com anúncios de queijo nozinho, queijo em trança, marreco recheado, coelho defumado, cachaça de Luiz Alves, vinho Vô Luiz, toalhas por 19,90, porcelanas e cristais Hering, jaquetas de couro legítimo, além dos onipresentes côco gelado e caldo de cana.
O rapaz me garantiu que o bairro de Joinvile onde estava a LAN era uma periferia tranquila, mas me pareceu uma periferia meio favelesca, e ao chegar na rua que seria a rua de entrada, vi sair de uma cabana, com toda a ginga possível, três jovens que poderiam tranquilamente ser os protagonistas do filme Cidade de Deus, portanto abandonei instantaneamente a idéia de parar por ali. Os trechos seguintes envolveram muito sobe e desce e inúmeros acessos de entrada e saída da rua lateral, nos arredores de Joinville, a maior cidade de Santa Catarina. Curioso é que a cidade fica suficientemente afastada da BR para que não se veja o esperado mar de arranha-céus.
Parei para almoçar no restaurante do Supermercado Makro, o que se revelou uma boa opção - cardápio do dia: almoço italiano. Lasanha, penne, espaguete, a carbonara, com presunto, até moqueca de cação à capixaba tinha. E o melhor, as janelas eram baixas e pude almoçar com ar condicionado a menos de um metro da bici, que ficou do lado de fora, em estacionamento de supermercado, que bem ou mal é um local cercado e com entrada mais ou menos controlada.
Nem bem terminei de mastigar, saí para o ar abafado da tarde, fui no posto de gasolina, escovei os dentes, enchi as garrafas, calibrei os pneus, e segui. Alguns quilômetros de sol, suor, subidas, baixadas, degraus de acostamento, andarilhos suspeitos, placas de queijo-marreco-toalha-jaqueta, me obriguei a parar em um posto para matar meio litro de gatorade de laranja seguido de meio litro de água mineral, um recorde, realmente a sede é algo que existe no verão brasileiro. A tentativa de uso de internet na polícia rodoviária e num posto de gasolina alguns quilômetros atrás me fizeram pensar que, ao contrário do que eu imaginava, o poder de comoção de um cicloturista carregado e obviamente cansado e inofensivo, à beira de uma faixa movimentada, é nulo. Creio que quem trabalha nesses locais já teve a curiosidade e a solidariedade embotada por trabalho repetitivo, apego ao cumprimento rigoroso de regras, e a provável sensação de que pouco pode haver de novo e merecedor de atenção no cotidiano de beira-de-estrada, o que, na minha opinião, é uma pena.
Ao chegar em Garuva, segui as orientações dadas pelo balconista do posto onde tomei o litro líquido, consegui encontrar uma LAN-house, e o lance de escadas que levava ao topo do prédio foi vencido sem muita dificuldade, mesmo com os alforjes, de modo que pude encostar a magarela em um local bastante seguro e visível, enquanto usava o computador. Fiquei uma hora lá, pois era cedo e o destino estava próximo, e afortunadamente o Roberto já havia respondido meu scrap, de modo que telefonei para ele e obtive seu endereço, deixando tudo combinado para o dia seguinte. No meio tempo, olhei os outros scraps e conversei pelo messenger com outras pessoas especiais, de quem sempre tenho saudade e com quem me agrada muito conversar.
Saí de lá alegre, pois o GPS (agora com pilhas novas, compradas em um mercado onde atendiam duas LINDAS caixas, coisa rara) marcava míseros 13km para a chácara de meu tio. Pena que após os ditos quilômetros, em uma estrada semi-plana e semi-reta ladeada por açudes, banhados, arrozais e mata litorânea densa, o ponto marcado começou a ficar PARA TRÁS, e a falta de referência me deixou decepcionado. Um quilômetro após o outro, pensava se não teria já passado do ponto, até que resolvi parar e perguntar. Um senhor me explicou que ainda era mais para frente o ponto, e quando finalmente achei a chácara, havia percorrido quase 22km para fora da BR! E tudo isso para não gastar com pernoite em Garuva, que até corpo de bombeiros tinha! E agora, senhores, quantos reais será que vale um quilômetro rodado?
Chegando à porteira da chácara, dei uns gritos e apareceu um senhor não muito alto, barba grisalha, pele bastante queimada pelo sol, que rapidamente descobri se tratar do seu Quiliano, o caseiro que, segundo o Fernando (marido da minha prima Rosângela), me faria sentir "em casa". Disse quem eu era, de quem era filho, que era sobrinho do seu Wilson, que já tinha estado na chácara antes, etc. Ele conversou amavelmente comigo, me recebendo muitíssimo bem, me convidando para entrar, mas caiu quadrado no ouvido quando ele falou: "só fica meio ruim é de eu te receber aí, porque eu não tenho a chave da casa..." "mas eu trouxe barraca" "é, na verdade tem um quartinho lá, com cama, deve ter um chuveiro, espera aí que vou buscar a chave". A coisa lentamente melhorava. A janta estava garantida pela lanchonete a meio quilômetro dali, segundo informação (bem mais precisa desta vez) do seu Quiliano. Agora era ver o quarto e o banho!
Ao ser aberto o quarto, vi uns seis colchões acomodados em dois beliches num quarto de 3x3m, bastante abafado e com cara de pouca ventilação. O banheiro, proporcionalmente pequeno, possuía um fóssil de chuveiro que consistia no clássico cano na parede, aquele olho negro lá em cima insinuando "e aí, vai encarar a aguinha gelada no lombo?". Até o seu Quiliano concordou, após eu me despedir da peça urinando no vaso e tendo dificuldade em fazer a descarga funcionar (continuou sem funcionar apesar da intervenção mais intensiva da parte dele), que seria uma melhor idéia dormir NA OUTRA CASA, sim, pois havia uma outra casa, vazia, com várias peças, banheiro, cozinha, mobília básica, no terreno ao lado da chácara, e também de propriedade de meu tio. AAAAAhhhh, agora sim, lá fomos nós.
O esperado aspecto de pouco uso da casa não foi entrave para minha satisfação ao entrar no vasto domicílio. Percebemos que só havia um chuveiro (apesar dos dois banheiros), que as luzes funcionavam, havia alguns travesseiros e várias camas (eu usaria a canga como lençol), então agradeci previamente ao seu Quiliano, combinamos que eu deixaria a chave por dentro da porta dos fundos ao ir embora, e que eu jantaria lá na curva na tal lanchonete.
Ao entrar sob o chuveiro, abri as torneiras e nada. Fechei as torneiras, virei a chave de temperaturas para a posição desligada, e abri o registro. Mas ao abrir as torneiras novamente, qual não foi minha surpresa ao ver que a água saía por todas as emendas do chuveiro, que apresentava realmente várias frestas em sua carcaça. Banho frio, lá vou eu, não totalmente a contragosto, pois o dia estava de fato quente. Só que os fios elétricos conduziam um pouco, e eu senti aquele choque desagradável que ocorre quando a água escorre em um jorro contínuo desde a fiação até o couro cabeludo do vivente.
Troquei de chuveiro e ali sim pude aproveitar o espaço maior e a precisão do jato grosso e contínuo que escorria do cano horizontal que provinha solitário da parede. Na verdade, acredito que um banho morno não seria tão agradável. Sem delongas, me sequei, me vesti, penteei improvisadamente o cabelo (que ofereceu bastante resistência depois de dias sem ver um pente) e fui, caminhando, até a lanchonete. Ao chegar finalmente na frente, dei com a cara na porta, estava fechada. Oh, céus, oh, vida. Toquei a campainha, a senhora disse que só servia almoço. E eu "mas onde eu janto então?" "Ah, na outra lanchonete logo ali na frente" . Menos mal.
Lá chegando, pedi uma janta completa e um guaraná 600, que logo comecei a tomar, já meio têmulo de cansaço e fome, em frente à TV. A janta que veio foi uma tigelona de feijão, outra igual de arroz, salada, aipim (só o aipim já dava a janta toda), e farofa de banha de porco feita na hora. Ah, e dois bifes gigantes no estilo sapatos-de-neve. Comi os dois bifes e menos de um terço do restante da comida, e saí caminhando já no escuro, bem satisfeito. Ao chegar de volta na casa, tomei outro banho gelado, e me deitei sobre a canga em uma cama de casal com um travesseiro bem aconchegante com cheiro de guardado. Assim, antes das nove e meia e mais uma vez praticando o nudismo doméstico, adormeci.

Bem, uma vez na vida dormir cedo, isolado e em silêncio deu efeito: por volta das seis e pouco da manhã, eu já estava de olhos abertos, ligando o telefone para ver que horas eram, e lentamente criando forças para levantar. Levei bastante tempo para organizar a vida, e finalmente abri o leite em pó e o toddy saché que me acompanhavam desde São Chico (quase dez dias carregando um quilo desnecessariamente...), que comi com um pedaço de pão (esse, sim, veio ao Paraná, vamos ver se chega a São Paulo).



Limpos os óculos, passados o desodorante e o filtro, arrumadas as bagunças e fechados os registros, segui viagem, saindo às quinze para as oito, já meio fedorento, pois as roupas que foram lavadas na véspera com sabonete, apesar de aparentemente limpas, estavam ainda úmidas e - maldição - exalando ainda a catinga costumeira.
Quantos reais vale um quilômetro? Ainda não cheguei à conclusão, mas os vinte e um quilômetros que tive de percorrer para VOLTAR ao mesmo ponto da 101 me consumiram exatamente uma hora, de modo que às quinze para as nove tomei a BR em direção a Curitiba, aguardando a tão malvada serra.

A serra paranaense, ao fundo

Aquele trecho é bastante bonito, havendo vários córregos cristalinos em meio a pedras de arenito alaranjado que afrontavam acintosamente o meu prezo por um banho de rio, pois no momento eu já sentia bastante calor, mas o medo da serra e a vontade de contrariar o prognóstico de 12 horas de viagem feito pelo Roberto na véspera me fizeram optar por contar com o banho de chuveiro mesmo, e fazer a viagem render durante o dia. Afinal, o prezo pela velocidade média e pela aproximação com o destino futuro da viagem também participam da minha vida atualmente. Assim fui indo, no sobe e desce, com os viadutos sobre os regatos, e com os sítios convidativos cheios de palmeiras e bambus e bananeiras e samambaias e toda a exuberante mata costeira, jardinzinhos, estradinhas, trilhazinhas, parece que todos os donos de terrenos à beira da estrada, naquele trecho, combinaram de decorar suas propriedades da mesma forma. A cada córrego, olhava aquela água tão improvavelmente clara, e olhava à esquerda, encosta acima, me certificando que a floresta íngreme de fato não abrigava nenhuma moradia potencialmente poluidora.
Exatamente como previsto, andei não mais do que um quilômetro e meio na parte realmente inclinada da serra, até que aparecesse algum caminhão quase tão lento quanto eu, e eu obviamente me segurei em uma providencial alavanca na carroceria, sendo assim rebocado sem problmas por bem mais de dez quilômetros. Fui assim ajeitando a posição da mão, trocando o pé que ficava embaixo, suportando o peso do corpo, entre o esquerdo e o direito, desviando dos inúmeros buracos e remendos do asfalto (todos eles de pequenas dimensões). Eventualmente soltava do caminhão em trechos piores, até para tomar uma água, conseguindo alcançá-lo novamente sem problemas, dada a baixa velocidade. Durante a subida, notei a discreta queda de temperatura, e por sorte não houve nenhum ponto paisagisticamente muito privilegiado, porque eu definitivamente não largaria meu caminhão tubarão para ficar batendo fotos. Até um mini-cachoeira à beira da faixa eu refuguei, hehe.
Abandonei o caminhão, sem grande sentimentalismo, ao passar na frente da polícia rodoviária, quando aliás começava a descida. Uma descida, apenas, porque logo adiante havia mais subida, e assim foi até chegar bem mais para cima, uma sucessão de subidas e descidas, sempre mais subidas, e nenhum caminhão lento o bastante para segurar. Parei em um posto já com 60km rodados, posto Monte Carlo, onde comi um pedaço de bolo e um néctar de caju em lata. Enchi as garrafas de água, e segui viagem. Bem mais adiante, e algumas subidas depois (contrariando a muito duvidosa informação do caixa do posto de que "agora é mais descida até Curitiba"), já em algo que tinha mais cara de pré-perímetro-urbano, parei num posto com apetitoso e provavelmente caro buffet para comer uma coxinha com guaraná, e descansar a bunda, bem como os pés. Eu estava com dor nos dedos do pé direito, provavelmente por ter ficado muito tempo forçando ele para baixo durante a carona no caminhão. Nada é impune!
Depois de revigorado, sem fome e descansado, pensando estar próximo ao destino, comecei a atravessar a zona bem periférica de São José dos Pinhais, e dá-lhe sobe e desce, acostamento ruim, vestígios de civilização vindoura, trevo com a BR-116, e nada do troço chegar, as placas sempre indicando uma distância adicional a mais do que era esperado, um sol escaldante, e a vontade de pedalar me dando força só por saber que faltava pouco para chegar (cada vez menos, na verdade). Parei num posto para pedir informação, depois pedi informação para um entregador de panfleto, e sempre era mais para frente: passando o Big, primeira sinaleira à esquerda, vai sair na Rua Chile, quando chegar em frente ao cemitério Água Verde, rua Silveira Peixoto, 86, loja Bikeline!
Achei a frente da loja meio estranha, não tinha número, liguei pro Roberto, que logo me atendeu. Entrei e fui apresentado à sua esposa, a Celsis, aos seus filhos Daniel e Alan (que foram chegando aos poucos), a três simpáticas coas (duas labrador e uma daschund - lingüiça para os leigos), e a dúzias de bicicletas. Nada como se sentir em casa.



Comi umas pizzas, tomei coca cola (O caldo...), sorvete de chocolate, banho de chuveiro, e horas e horas escrevendo este bendito blog, que já estou de saco cheio e vou publicar logo, que daqui a pouco é a largada de mais um dos inúmeros eventos que o Roberto organiza por aí toda hora, todo dia, e eu pretendo conversar um pouco com o pessoal antes de nanar (pra variar, a largada é à meia noite, soa familiar?)

Um abraço a todos, e até a próxima. Pode ser que demore!

7 comments:

Anonymous said...

Parece que estou lendo um livro de aventuras.. Aventuras Cicloturisticas de Helton. ou também poderia ser. Aventureiro Helton, o Cicloturista.
=O) Muito bom. Continua assim. Bjos
Romi

Varda said...

Pô, uma vez por semana tem que ter uma roubada, ou "quase roubada" na hospedagem, que pé no saco. :P Se bem que são essas coisas que dão o gostinho da viagem.

Quando li a parte de Curitiba, eu Lembrei que tenho um mapão da capital paranaense, aqui em casa,e podia ter te mostrado o caminho completo até a lojinha da água verde.

Anonymous said...

Helton: TU É UMA VIAGEM! Lindas camareiras né?
Abração, Gonzalo.

FarAmiR said...

Nossa, infinitos caracteres nesse post.. E eu realmente não acreditando nos olhares insinuantes que as camareiras debruçavam sobre o cicloturista barbudo e despenteado, um velhinho Aqualung rejuvenescido..

Passar bem, se cuide..

Anonymous said...

Passei o resto do sábado depois que conversamos no msn,entrando e saindo para ver se vc ja tinha publicado,não dei sorte.Como no domingo iamos para Gramado,resolvi deixar para ler depois do passeio.
Mas voltei tão cansada e queimada do sol escaldante do domingo que nem entrei na net.
Adorei as fotos...e o relato tá fantástico!!!
...cuidado com a mania de perseguição...jagunços?kkkkkkk!!!
Te cuida amiguinho!!!

abraços,ninki

Anonymous said...

Passei o resto do sábado depois que conversamos no msn,entrando e saindo para ver se vc ja tinha publicado,não dei sorte.Como no domingo iamos para Gramado,resolvi deixar para ler depois do passeio.
Mas voltei tão cansada e queimada do sol escaldante do domingo que nem entrei na net.
Adorei as fotos...e o relato tá fantástico!!!
...cuidado com a mania de perseguição...jagunços?kkkkkkk!!!
Te cuida amiguinho!!!

abraços,ninki

Anonymous said...

Passei o resto do sábado depois que conversamos no msn,entrando e saindo para ver se vc ja tinha publicado,não dei sorte.Como no domingo iamos para Gramado,resolvi deixar para ler depois do passeio.
Mas voltei tão cansada e queimada do sol escaldante do domingo que nem entrei na net.
Adorei as fotos...e o relato tá fantástico!!!
...cuidado com a mania de perseguição...jagunços?kkkkkkk!!!
Te cuida amiguinho!!!

abraços,ninki