Monday, December 04, 2006

Dia 00 - Porto Alegre, RS - 00 km



E aí, Galera

Este é o último post em terra firme. Coisas interessantes aconteceram nos últimos dias: recebi a visita do cicloturista peruano Enrique Calvo, que já está no Uruguai a essas alturas. Ali vi que há uma diferença gritante entre os estilos de viajar: enquanto eu curto preparar tudinho, prever as coisas e planejar minuciosamente, o cara é realmente roots (ou sem noção mesmo): viaja sem material impermeável, levando somente alforjes traseiros feitos com mochilas e mais algumas tralhas sobre o bagageiro (exatamente como farei, mas ele já está há 11 meses na estrada e veio pelos Andes!!). Nunca achei que ser cicloturista fosse barbada, mas ter um choquezinho de realidade (ver o cara contando as roubadas que se enfiou, tendo sido até assaltado no Equador), faz a gente pensar melhor sobre as coisas... Mas o que mais chamou atenção foi que, apesar da pedreira, ele continua firme, e quer porque quer chegar a Ushuaia, nem que pra isso tenha que ficar mais um ano perambulando de bico em bico pra juntar uma grana e tentar de novo no próximo verão. Realmente, chega uma hora que desistir passa a não fazer mais parte do vocabulário.
Pra não dizer que não falei de flores (ou para voltar a comentários sobre coisas amenas), este fim de semana fui com amigos à Granja Armadilha, em Itapuã, para acampar e fazer trilhas, e lá tive mais uma pilulazinha de brinde das dificuldades que se possa ter na estrada: uma foi o calorão absurdo que fez, que me levou a dormir até as dez mesmo sob o sol (desenrolei a espuminha e o saco de dormir sobre uma mesa num quiosque, não vi necessidade de montar barraca nenhuma, até porque nômade que é nômade não tem essas frescuras...), e que fez a vontade de pedalar depencar a níveis negativos. Supondo que no centro do país em janeiro isso será uma constante, creio que ou eu levo um reboque de água na bike, ou então minha quilometragem diária vai ficar bem longe dos recordes mundiais. Pedalar à noite está ficando cada vez mais tentador, e, como disse, a natureza segue seu rumo naturalmente, minha bike já está forrada de refletivos, intuição não é só coisa de meninas.
Outro percalço foi na hora do café da manhã, quando fui pegar minha copa (um tipo de salame) e vi que formigas malvadas haviam roído várias camadas de plástico e já se amontoavam em um profundo buraco que haviam cavado salame adentro, não sem deixar resíduos bastante semelhantes a farofa (fezes? bagaço mastigado e cuspido?) dentro da embalagem. Nada que cortar uma fatiazinha não resolvesse, e isso não me impediu de saborear a copa (que é ótima fonte de proteína e sódio, além de nitritos cancerígenos), já que não me convenceram ainda que formigas (ainda mais as do campo) sejam animais sujos ou contaminados. Mas a lição garantida é que, ao contrário daquele outro esporte, no cicloturismo copa não combina com gramado.
O escritor José Luis Borges disse, certa vez, que ele publicava os livros não porque estivessem prontos, mas porque precisava se livrar deles, do contrário passaria o resto da vida revisando-os e corrigindo-os. Pois é o que farei: parto finalmente amanhã, não porque esteja pronto, mas porque preciso partir antes que não parta nunca. Nada do que eu faça com a bicicleta a torna livre de melhoramentos em potencial, e nenhum check-list consegue acabar com a sensação de estar deixando coisas fundamentais para trás. Portanto, acho que vou apenas instalar o botãozinho de "FODA-SE", bem ao lado do guidão, e entrar logo em velocidade de cruzeiro.
Até a próxima!

3 comments:

FarAmiR said...

Se eu não tivesse infinitas provas, ia te encontrar pra quebrar uma garrafa de água mineral com gás na bike antes da partida..

Escreveu bonito hein.. Citando José Luis Borges.. Se puxando..

Falou, boa e longa indiada pra ti

Anonymous said...

Um pouco atrasado, mas estou começando a acompanhar tua viagem e teus relatos hoje.

Abraços

Fabio Lazzarotto.

Catty said...

Ser un ciclista por sudamerica es todo un sueño para la mayoría de personas, por eso me alegra conocer que existen soñadores como usted. Soy amiga de Enrique Calvo de Perú y por eso entiendo lo que debe sentir en su viaje. Muchas bendiciones.